OS ANJOS NÃO MORREM E TU MORRESTE DUAS VEZES — A Confirmação do Talento na Arte de Escrever

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
18 min readSep 14, 2023

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Fotografia de Carla de Sousa

Cláudia de Sousa Dias

Em Os Anjos não Morrem e tu Morreste duas vezes, de Marta Duque Vaz, encontramos em pleno o seu talento e mestria na escrita. Pode-se dizer, por isso, que este livro é um marco na carreira da escritora que vem das Ciências Sociais e que não se limita a falar de temas actuais, mas fá-lo com habilidade analítica, de sabor agustiniano, em algumas observações mordazes, e ironia quanto baste, além de o fazer com grande capacidade de expressão poética.

Trata-se de um livro composto por doze histórias protagonizadas por mulheres de todas as idades que se deparam com situações-chave que afectam o seu mundo, marcando o seu percurso de vida e a sua forma de se relacionar com o Outro (“Laura e os Dias”, por exemplo), como se verá mais adiante. Este impacto dá-se em várias esferas — familiar, profissional, amorosa, intelectual, espiritual, artística — reflectindo-se em situações do quotidiano que servem de pano de fundo à criação literária e à arte de construir o conto como ficção curta, muito em paralelo com a forma de se construir a curta metragem cinematográfica.

Numa estética que vai buscar inspiração ao Modernismo, Marta Duque Vaz recorre, para terminar quase todas as histórias, ao momento de suspensão da acção (como em “Sinfonia para um vestido verde” ou “A arte de ser a última”) deixando-nos no limiar dos acontecimentos, produzindo finais abertos de forma levar o leitor a conjecturar, ele próprio, o desenlace, tal como nas histórias de Katherine Mansfield ou mesmo de Clarice Lispector. Todas estas histórias de mulheres — que dizem respeito a todos os seres humanos — têm uma particularidade que causa sempre alguma perturbação. Perturbação que se antevê na escolha das epígrafes que antecedem o desfile carnavalesco das personae criadas pela autora, a incarnar os diversos papéis sociais e conflitos vividos pelas mulheres que fazem parte da sociedade hodierna. Passemos então às histórias, uma por uma.

1. “Os anjos não morrem e tu morreste duas vezes”

O livro abre com a história que lhe serve de título, onde a qualidade da prosa cativa o leitor logo nas primeiras frases. Aqui vêem-se construções frásicas, que tanto em termos fonológicos como em termos semânticos, ficarão igualmente bem noutras línguas românicas como, por exemplo, o italiano (ou alguma outra língua da península itálica), o galego ou o catalão. Tomemos como exemplo a frase que se segue: «Um aroma a flores de Novembro sem céu à vista» que, por exemplo, em italiano ficaria «Un intenso profumo di fiori di Novembre senza cielo in vista», em que “senza cielo” se aproxima muito de “syncel” (sincelo), aumentando exponencialmente, por paronímia, o conteúdo polissémico e poético da frase. As mesmas flores de Novembro a que a autora se refere e que são as flores do Dia de Todos os Santos, como por exemplo, os crisântemos com as suas pétalas que lembram as estalactites que se formam nas folhas das árvores, quando a neve é soprada pelo vento.

A protagonista do conto é uma menina-mulher, Leonor, que vê as suas certezas abaladas — aquilo que tinha como absolutamente inquestionável na infância — pelo primeiro contacto com a morte de um ente querido. Sem que haja, de facto, nenhuma referência explícita no conto ao grau de parentesco entre a pessoa que está a ser velada — Maria Augusta — e Leonor, percebe-se que há uma grande afinidade afectiva pela reacção de todos os familiares próximos a ambas. E que aquela anciã, independentemente de se tratar de uma avó, tia-avó, tia materna ou paterna, é alguém fundamental na construção da identidade das gerações que se lhe seguiram, mas que deixou uma marca especialmente profunda na espiritualidade da jovem Leonor. Numa família tradicional, onde o tronco principal da espiritualidade, comum a praticamente todos os membros presentes no velório, emana da fé católica, a morte de Maria Augusta instila pela primeira vez uma centelha de dúvida, na jovem adolescente. Isto despoleta nela a necessidade de fazer a ponte entre o visível e o invisível, procurando o contacto post-mortem com o seu ente querido. E é precisamente a falta de resposta que lhe faz surgir, pela primeira vez, a dúvida existencial, deixando-a no limiar, diante da margem do Estige e de um caixão como a Barca de Caronte. E o silêncio como uma segunda morte.

2. O segundo conto, “Terra, Sangue e Flores de Laranjeira” é um dos meus preferidos, não apenas por ser um tema que está na ordem do dia, mas, sobretudo, por ser uma realidade directamente observável, em todas as dimensões do quotidiano. De facto, a violência doméstica dificilmente passa despercebida, tanto há cinquenta anos como hoje. O conto remete-nos para comportamentos que estão fortemente enraizados no tempo e na cultura e que são representantes de tradições que vêm de tempos imemoriais e por isso se encontram ainda fortemente inculcados no seio da mentalidade portuguesa e noutras, como sendo os papéis sociais sexualmente demarcados a influenciar o comportamento, moldando a identidade de género (note-se que não estou a falar de biologia de género ou de sexo biológico, nem de diferença sexual cromossómica) como se as funções sociais fossem determinadas pela biologia e não pela cultura. Assim, partindo da descrição de uma situação concreta, Marta Duque Vaz pinta um quadro situacional onde as mulheres têm de se submeter à autoridade masculina na hora de fazer escolhas, mostrando até que ponto a recusa em submeter-se às regras do sistema pode ter consequências gravosas, inclusive para a própria integridade, quer física quer mental. O conto desafia assim as estruturas de uma sociedade onde a célula familiar é fortemente orientada pela preferência do padrão masculino, que aparece como dominante — o patriarcado. Aqui, a identidade de cada um é construída com base em estereótipos ou moldes que constroem a mesma identidade como uma peça de cerâmica no oleiro logo a partir da infância, orientando os seus papéis em formas particularmente rígidas. Por exemplo, Martim, o irmão da protagonista, Mariana, que por ser rapaz, é desencorajado a participar das tarefas domésticas. Estas atitudes, tendo sido durante algum tempo (século XIX) concebidas como sendo de base biológica e não cultural (a mentalidade só começou a mudar efectivamente a partir da 1ª Guerra Mundial, quando as mulheres começaram a assumir funções que pertenciam até aí ao domínio masculino, em virtude de os homens terem partido para a frente do combate) como de facto são, relegam as mulheres da casa para a condição servil face ao homem, que é tratado como o “senhor” ou “dominus” do agregado. Quem se recusa a obedecer portanto ao diktat do chefe da “domus” é logo à partida relegado para a condição de rebelde ou de inadaptado. As consequências são a criação de uma sociedade fortemente desigual no tocante aos sexos — como por exemplo, a sociedade vitoriana do século XIX — onde estes são estruturados hierarquicamente segundo o sexo biológico, com o sexo feminino hierarquicamente inferiorizado. O final, porém, deixa entrever um futuro de justiça e paridade, simbolizado pelo chá branco.

3. “Breve ensaio sobre o destino” é construído em moldes diferentes. Com uma narração em discurso indirecto livre o conto é tripartido, desdobrando-se em três retratos psicológicos de três avós diferentes que convergem para o mesmo ponto. Este é sobretudo um conto reflexivo, de elevado teor filosófico que explora a ontologia de cada um dos três perfis traçados. A construção estrutural do conto é, mais uma vez, de inspiração fortemente modernista, encontrando paralelo nos textos mais experimentais de Virginia Woolf (como “Three Pictures” ou “Portraits”). A autora constrói, por sua vez, três quadros comportamentais e psicológicos que, não sendo exactamente paisagens ou retratos estáticos deste tríptico matriarca, são antes figuras em movimento, em que cada uma delas se revela através das acções e forma de interagir com os netos, do papel que estes desempenham nas suas vidas. Neste conto não há — e nisto consiste uma das grandes mais-valias do estilo narrativo de Marta Duque Vaz — qualquer vestígio de juízo de valor em relação a qualquer uma delas, pois cada qual exerce o seu papel de avó de acordo com as contingências que lhes marcaram o destino, não lhes tendo sido por isso possível escolher ou não ser avós.

Assim nos surge, em primeiro lugar, Ester, uma avó que deseja muito sê-lo, apenas esse desejo não depende de si, mas antes de um capricho do destino. Ou das vontades alheias que ela não consegue controlar. A segunda avó, Branca, é uma mulher que enceta uma vida activa após a sua aposentação, cheia de dinamismo, personificando a geração sénior que não se deixa envelhecer. Esta é também a fase da vida em que procura transmitir aos netos o legado imaterial de um precioso património que foi adquirindo ao longo da vida: o conhecimento. Outro paradigma representado pela terceira anciã que completa esta tríade é o de Virgínia, uma mulher com alma artística que se realiza através da neta e com ela. Na verdade, aqui há um objectivo, um projecto comum que aproxima as gerações, eliminando o fosso (gap) entre elas e promovendo naturalmente, por via das afinidades, também, artísticas. Virgínia partilha o palco com Cristiana, na tentativa de recuperar o tempo perdido, quer como actriz profissional quer na busca máxima de tempo de qualidade para estar com a neta — o “tempo recuperado”, de forma quase proustiana ou até heideggeriana, do “tempo perdido”.

4. “Laura e os dias” é o conto que talvez mais se aproxima da temática neo-realista de toda a colectânea. Ao seguirmos a rotina de Laura, na sua luta constante face às severas restrições orçamentais que a limitam, invariavelmente, nas suas escolhas diárias, obrigando-a a prescindir muitas vezes de coisas essenciais: cuidar da própria saúde — porque há um filho em crescimento e desenvolvimento, cujas necessidades são prioritárias — e até de um possível amor. Marta Duque Vaz leva-nos ao duro quotidiano de uma família monoparental, uma mulher trabalhadora, mãe solteira, cujo salário mínimo é tudo menos “elástico”, além de possuir um vínculo precário com a entidade patronal. Laura é uma trabalhadora pobre. A situação agónica afecta as suas escolhas diárias, desde a escolha dos alimentos, à ida ao médico. Laura não tem dinheiro para embelezar o espírito. Aproveita os espectáculos grátis, se os houver. O quotidiano de Laura lembra muito o de Julie no filme À Plein Temps [A Tempo Inteiro] de Éric Gravel, onde não falta inclusive a componente de stress no enfrentamento do transito matinal para o trabalho. A autora junta a tudo isto uma nota de humor negro a cortar um pouco o teor do neo-realismo clássico que marca o conto e a aliviar um pouco, também, a dureza da descrição deste dia-a-dia de Laura. A autora recorre, mais uma vez, à narração em discurso indirecto livre, tal como na cena dentro do carro em que Laura quase perde o seu periclitante dente canino. Uma das facetas mais interessantes do conto é a capacidade de Laura escarnecer de si própria. O final é aberto, mais uma vez, deixando o leitor em suspenso quanto ao tempo que faltará a Laura para que possa cumprir o desejo de beijar Sandro. O impacto da violenta e silenciosa pobreza a “adiar o amor para outro século”.

5. “Sinfonia para um vestido verde” entra já em forte contraste com a dureza do conto anterior. A cena inicial, que serve também de prelúdio à acção, descreve um jantar em casa da protagonista onde se reúne um sedutor quarteto feminino e a conversa circula à volta das artes e da beleza. A mesa é “queirosiana”, sem chegar a ser pantagruélica, percebendo-se o quanto a protagonista aprecia e está habituada a usufruir dos pequenos prazeres da vida, essencialmente em boa companhia, ao ritmo de conversas alusivas às artes em geral. A mesma cena inicial não deixa adivinhar o rumo da história, uma vez que, a acção propriamente dita, começa com o depósito do lixo doméstico num ecoponto, prosseguindo numa dança de sedução verbal entre duas pessoas oriundas de mundos radicalmente diferentes, que o acaso junta numa tarde de meteorologia incerta. Esta é uma história de improbabilidades que começa num ecoponto, passa por um coreto e termina numa sinfonia, com louvor especial e assumido fascínio por maestros e maestrinas, nomeadamente a portuguesa Joana Carneiro. Esta história fala-nos sempre de possibilidades e vinca a ideia de que nenhum calendário, ainda que distinto, pode impedir, a possibilidade de uma atracção que reside no ponto de intersecção do amor romântico com o amor universal à Arte, à Música e à Beleza, cultivado por ambos os protagonistas. Aqui há também uma nota de humor, embora não tão vincada como em “Laura e os Dias”. O humor desconcertante de Luísa que cativa Lian e as suas particularidades muito próprias, como a distracção crónica, o esquecimento de pequenos objectos essenciais. Detalhes que proporcionam um toque de verosimilhança à história, tornando-a credível e cativando inevitavelmente a empatia do leitor pelo encontro inusitado. Há também, nesta “Sinfonia para um vestido verde” a intersecção entre os mundos, tão distintos, de ambas as personagens (Luísa é europeia, Lian é asiático), revelando também diferenças culturais e geográficas. Podemos subentender ainda diferenças de gostos que reflectem o estilo de vida de cada um. Por exemplo, na loja de tecidos: para a mesma cor ele prefere tecidos brilhantes, que chamem a atenção, adequados para ma exibição em palco. Ela por sua vez prefere tonalidades mais discretas, em tecidos mais opacos, mate, que não a coloquem na ribalta. Trata-se, no entanto de diferenças conciliáveis. Depois há também os gestos que traem as emoções de cada um. O conto termina em ponto de soufflée, tanto no final como no epílogo, deixando a promessa de que algo mais pode acontecer — e acontecerá certamente — na condução mental da orquestra de emoções que cada leitor, a seu modo, conduzirá no final. Pode dizer-se aqui que a autora, sem o fazer explicitamente, estabelece um quase paralelismo entre o delicado manjar que depende do tempo certo e da temperatura ideal para ser saboreado convenientemente.

6. “O Anel sem palavras” é a história de Cremilde e Teobaldo. Aqui temos novamente a música — desta vez o Anel do Niebelungo -, como cenário de fundo de uma história de amor amputada a duas vidas. Trata-se de um conto órfico, onde há a recuperação de um amor passado, a que se junta uma inversão de papéis em que é Eurídice a visitar o seu Orfeu do Hades ou reino dos infernos que é representado por um lar de terceira idade ou casa de repouso [os Campos Elísios da mitologia clássica]. Trata-se, ainda, de um dos contos mais pungentes, mas, ainda assim, tingido com um forte teor crítico, focalizado na forma como é, hoje em dia, em muitos casos, tratada a terceira idade e a velhice por parte daqueles que lidam com ela, profissionalmente e não só. A narrativa salienta o ridículo patente nas atitudes muitas vezes adoptadas por cuidadores que, apesar da sua bonomia, infantilizam o idoso. O nome dos protagonistas não foi, por isso escolhido ao acaso. Cremilde e Teobaldo são nomes que precisamente não “admitem” o uso do diminutivo sem que a pessoa que o faça caia no mais absoluto ridículo (ninguém se atreveria a pronunciar um “Teobaldinho” ou “Cremildazinha sem soltar a silenciosa gargalhada) ou até raiando o insulto. Aqui deparamo-nos com o diminutivo que, em vez de acarinhar, diminui a pessoa na sua dignidade. Estes são nomes escolhidos, como outros, por não permitirem ser diminuídos sem que o irrisório se instale. Porque é verdade que os diminutivos em excesso que se utilizam em diálogo com as pessoas mais velhas, sobretudo quando começam a perder faculdades, tornam a velhice aviltante. E mais ainda quando são dirigidos a idosos ou até a pessoas de meia idade, na plena posse da sua força física e capacidade mental. Apesar disso, o conto devolve-nos a lucidez necessária para «salvar alguns dias da dor inevitável», como escreve a autora, graças ao amor e à música. Aliança que dispensa palavras. Uma narrativa que é, também, um apelo à mudança comportamental porque «ser velho não é ser criança outra vez».

7. “Viciada em inícios” é um título que desperta, como quase todos os desta colecção, a curiosidade do leitor pela forma enigmática como é construído, uma vez que normalmente as pessoas são, até por via cultural e dos contos de fadas tradicionais, viciadas em finais felizes. Aqui não os há. Assim, a protagonista, Nina Denski, fotógrafa, sente uma constante necessidade de fazer uma espécie de restart continuo à sua vida amorosa. Nina é uma mulher talentosa e sedutora, mas ainda assim tem o impulso incontrolável da edição permanente da sua vida amorosa. O momento-chave é aquele em que Nina reconhece a patologia que diagnostica a si própria, reconhecendo que precisa de ajuda para seguir adiante. Nina é uma pessoa com elevado sentido crítico, sendo sobretudo autocrítica e exigente consigo própria, encarando com ironia bem-humorada aquilo que entende ser a sua debilidade nos relacionamentos que enceta. E ao decidir procurar ajuda médica, visa aprimorar o conhecimento de si. A história acaba por ser um interessante e inesperado tributo a Mário Cesariny de Vasconcellos que inspira a protagonista a seguir o seu caminho sem a necessidade de consultar um psiquiatra pois talvez um psicoterapeuta a consiga ajudar a “curar” a sua suposta e inusitada “patologia”. Ou não.

8. “A Pesquisadora” tem Rosana como protagonista e a sua busca como leitmotiv de todo o enredo. A “pesquisadora” em questão viaja do Brasil para Portugal em busca do local e da data de baptismo de uma mulher que nasceu no século XVIII em Portugal e que, mais tarde, emigrou para o Brasil, tornando-se uma das precursoras do feminismo naquelas paragens apesar de, na sua terra natal, permanecer na total obscuridade. Nesta perspectiva, muito semelhante à intenção woolfiana de iluminar as vidas de mulheres obscurecidas por muitas décadas de domínio masculino da historiografia literária, Rosana segue no rasto de Mariana Coelho, até chegar a uma aldeia remota do Alto Douro Vinhateiro, com reduzida densidade populacional, construções seculares e paisagem natural de extraordinária beleza. Aqui, a investigadora, depara-se não só com a beleza do lugar e do templo, mas principalmente dá conta, com cada vez mais clareza, do seu confronto interior, buscando em Mariana Coelho, objecto da sua pesquisa, a coragem que ela própria precisa para mudar a sua vida pessoal. Mariana Coelho, escritora e pedagoga, enquanto objecto de investigação da personagem Rosana, representa verdadeiramente a realidade de muitas mulheres, em todas as frentes do saber, que urge “desocultar”, conferindo justa visibilidade ao trabalho que desenvolveram. Louva-se a ideia da autora em chamar atenção para este facto com a ficção do real, pois há centenas de mulheres ocultas nas letras [e não só] como atesta Chatarina Edfelt no seu livro Uma História na História — Representações da Autoria Feminina na História da Literatura Portguesa do Século XX, dando mais um contributo para se falar deste tema, impulsionando o resgate de todas estas mulheres invisíveis para a História.

9. Em “A Menina é a minha única Senhora” o tema central é o trabalho doméstico, normalmente tão desvalorizado quer socialmente quer na Literatura. O conto tem a particularidade de atribuir a este tipo de trabalho o protagonismo e o valor que é costume atribuir-se ao trabalho intelectual. Este último aparecendo aqui em segundo plano, como pano de fundo, a servir de cenário ao protagonismo da empregada doméstica. A narração é feita em primeira pessoa pela dona da casa, cujo olhar incide sobre as coisas e as pessoas com o mesmo olhar antropológico. Esta narradora também não é uma patroa vulgar. É alguém extremamente jovem, uma trabalhadora estudante, que encara a sua relação com a empregada doméstica como uma parceria. Encontramos aqui uma cena das mais hilariantes do conto, pelo seu valor satírico, passada com a Dona Graça. A narradora, da qual nunca chegamos a saber o nome, dirige-se à empregada, por recados escritos, dado que raramente se cruzam. Nos bilhetes que lhe deixa, mais importante, do que as instruções detalhadas sobre o trabalho a fazer, é a extrema urbanidade com que se lhe dirige, a par da total ausência de tom condescendente, uma relação de paridade, como se se dirigisse a uma colega da mesma equipa de trabalho. De notar que neste conto a reflexão em volta da terminologia entre “criada” e “empregada” e o conflito geracional à volta do entendimento dessa questão que a partir dali surge, numa cena que faz recordar um pouco o protótipo da mulher descrita em “Retrato de Mónica” de Sophia de Mello Breyner Andresen. Aqui também sobressai a importância dada ao corta-papéis, detonador de uma problemática de grande relevo e que afecta, ainda hoje, algumas faixas etárias na população mais velha e ainda activa: o analfabetismo.

10. “A faca que corta o musgo” trata-se de um conto bastante perturbador, mais por aquilo que a autora deixa passar nas entrelinhas do que propriamente pela descrição dos acontecimentos. E é precisamente nas entrelinhas que reside a chave dos acontecimentos inesperados. É, contudo, um dos textos mais poéticos e literariamente belos de toda a colecção. Trata-se de um texto essencialmente evocativo, onde os objectos comuns saem das gaveta da cozinha, enigmáticos a princípio, intrigantes depois, mas que no final se percebe desempenharem o papel de detonadores da memória. Esta “faca”, em parte real e em parte metaforizada, tem a faculdade de cortar embotada, mas corta. Tal como a esquecida colher de prata que passa a ser usada para assinalar a diferença, a singularidade da personalidade que a ela, depois, se associa. Todos estes objectos, aparentemente inofensivos, se ligam, de uma forma ou de outra, à protagonista, Rosarinho. O texto, onde a nostalgia é a nota dominante a par do remorso, pode ser lido como um grito, um apelo para que falemos, sem temor ou tabus, da doença mental. Neste caso, creio, dos transtornos de humor, que começam a aparecer de forma alarmante na adolescência, precisamente a altura em que Rosarinho se torna “cortante”. Mas todos a julgam como a faca que corta o musgo.

11. “Por um triz”. Nesta história celebram-se memórias ou a arte de recordar, evocando episódios da vida passada partindo de uma obra de arte: “A Minhota” um quadro de António Carneiro. A partir da sua observação dá-se, ante a pintura à sua frente, uma grande analepse. Teresa, a protagonista, revisita circunstâncias da sua vida, nomeadamente o dia do seu nascimento, que se dá, por um triz, no Minho. A partir deste quadro a imaginação da autora operou, ao emprestar a voz a uma narração de terceira pessoa em discurso indirecto livre, a reconstrução da paisagem minhota, evidenciando as geografias e, também, as de afectos, num texto de beleza estética e literária ímpares, remetendo-nos a uma ambiência predominantemente vegetal, mas não só, numa alusão à íntima convivência entre o mar e a montanha do luxuriante Alto Minho, cenário que também encantou a lisbonense pintora Sarah Afonso, citada no conto, quando lemos «terra à espera de pintores». Aliás, de certo modo, algumas destas descrições paisagísticas bem podem lembrar o trabalho daquela artista que viveu no Minho e onde tantas vezes esteve com Almada Negreiros, seu marido, e que se encantou por estas terras e pessoas minhotas, exaltando a sua etnografia, tal como acontece, por palavras poéticas, neste conto. Dão-se conta de muitas correlações pintura/literatura, além da pintura de António Carneiro. O que está implícito leva-nos a desvendar mundos de referências históricas e culturais muito curiosas tanto do alto como do baixo Minho. Não só a menção expressa a Seide e à casa de Camilo Castelo Branco, por via do avô da protagonista (minhota, devido a um capricho da deusa Fortuna), ávido leitor camiliano como, mais uma vez, implícita se pode ver a torre da Fundação Cupertino de Miranda: « Era assim na infância: com frequência pousava o olhar no cimo das árvores, no sino da igreja matriz, na torre azulejada, branca e preta, enigmática e tão humana, que se desenhava ao longe, a marcar o centro da vila, hoje cidade». De referir a alusão final a todas as revoluções, ainda que interiores, empreendidas por mulheres, nomeadamente a minhota Maria da Fonte que, a meu ver, agrega todas as mulheres simbolizando o arrojo e a força de vontade feminina.

12. E, por fim, chegamos a “A Arte de ser a última” o conto que fecha o livro, misterioso por não dar uma chave objectiva para o fechar, muito pelo contrário: abre um clarão de interrogações na mente do leitor, deixando-o a conjecturar nesta arte de tão polissémica definição, mas que, ainda, assim a jabuticabeira pode resolver ou dar pistas para a resolução. Não a bíblica macieira, mas a lendária jabuticabeira. Não o primeiro fruto do pecado original, mas o último fruto, o fruto do desejo do futuro ignoto. O fruto da segunda floração, de uma vida (árvore) desconhecida.

Esta história evidencia a paixão de Martina por viagens solitárias, mas também se revela um hino de amor a um Brasil que sempre rumou ao seu corpo de «sal e de samba» por, desde criança, ouvir o português do Brasil e se comover com a música e a literaturas brasileiras. Ao empreender uma longa odisseia pelos seus “Brasis”, ficámos a conhecer apenas o troço da viagem que a leva a Campinas. Este é um conto de literatura em trânsito, de viagem, para chegar a casa de Ayde que não conhece, ainda, mas com quem se corresponde através do blog que cada uma mantém. As Artes e uma «dor subterrânea», de que nunca falaram, é na verdade o que une estas mulheres separadas apenas pelo Atlântico. A sábia Ayde, mulher mais velha do que Martina, dá-lhe a provar também do fruto do conhecimento e da experiência.

[Londres, 5 de Setembro de 2023]

Em Portugal, o livro está disponível em todas as livrarias. No Brasil, AQUI.

Bibliografia consultada:

BLANCO, Maria José & Williams, Claire (eds), Feminine Simgular: Women GrowingUp through Life-Writing in the Luso-Hispanic World, Peter Lang, Oxford, New York, 2017.

EDFELT, Chatarina, Uma história na História: Representações da autoria feminina na História da Literatura Portuguesa do Século XX, Câmara Municipal do Montijo, 2006.

GÄTTENS, Marie-Luise, “Three Guineas, Fascism, and the Construction of Gender” in Virginia Woolf and Fascism: Resisting the Dictators’ Seduction, edited by Merry M. Pawlowski, 21–38. Hampshire: Palgrave, 2001.

Lee, Hermione, Virginia Woolf, Vintage, London, 1997.

SMITH, Angela K, Women’s Writing of the First World War: An Anthology, Manchester University Press, 2000.

Woolf, Virginia (Author), edited by Susan Dick, The Complete Shorter Fiction of Virginia Woolf, London , 1985.

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