Na escuridão de algum lugar e o silêncio da morte, em Rogério Pereira

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
10 min readOct 21, 2023

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Alexandra Vieira de Almeida — escritora e doutora em Literatura Comparada (UERJ)

Rogério Pereira lançou dois romances em 2023 em vários locais no Brasil. Um deles é uma edição especial da publicação original em 2013, pela Cosac Naify, com orelha de Luiz Ruffato. Na escuridão, amanhã. Uma edição comemorativa agora pela Dublinense, 10 anos depois. E o mais recente livro Antes do silêncio, também pela Dublinense. Lemos, primeiramente, seu primeiro livro, sua estreia na seara literária e cabe aqui fazermos uma análise criteriosa do mesmo. Aqui mesmo, nesta resenha, faremos uma pesquisa sobre o mais novo romance do escritor de Santa Catarina, jornalista e editor do maior jornal de literatura no Brasil, Rascunho.

Na visão de Ruffato, o livro é “uma prosa intimista”, que “mescla memória e poesia” a “traçar um panorama social” e “com ausência de princípios éticos”. E o ponto nevrálgico é que a poesia não se esfacela perante a crueldade relatada pelo narrador quanto à complexidade de sua família, em que o desumano e a crueldade não dão trégua para seus membros. O mundo perverso vivido pelas personagens não deixa de mostrar os momentos poéticos lembrados pelo narrador, em que história de abusos são retratadas não com uma linguagem realista ou fotográfica, mas como flashes literários, em que a linguagem se torna o elemento mais forte para abafar os gritos da dor e do asco que ele vive em meio à cidade grande, pois a família do narrador sai do interior para os grande centro para se viver uma nova vida, que se apodrece nas memórias afetivas daquele que narra.

O esmaecimento do que está à volta, como uma fruta sem vida, nos dá a dimensão do tempo de angústia do narrador, que é um dos filhos deste pai que deveria ser esquecido, mas que de forma até opressiva existe ainda nas lembranças do filho, que revive o terror de um pai brutal. O tempo de angústia do narrador ganha um espaço, a escuridão, fazendo a narrativa oscilar entre o passado e o futuro. Na escuridão, onde tudo se desfigura e adquire tons barrentos, até o líquido escuro dos temporais mais violentos, transforma o narrador em um ser estilhaçado em que seus espelhos desocultam para o leitor o que se passa na mente como fator existencial de se vislumbrar a face borrada do passado que não se quer esquecer, mas que apesar do obscuro, quer ser sempre adiado para um novo amanhã, devido à sua máscara traumática, cujo rosto revela a nudez do que está dentro e não quer calar, porque a linguagem se torna o libelo da voz que se transforma em denúncia.

O pai, um ser odiado pelo filho é exposto no terreno da referência para o leitor. Na intimidade de sua linguagem que o aprisiona num labirinto de signos. O livro é como uma teia de aranha a enredar o filho para que ele escape deste fundo sufocante. A mãe, com toda sua fé na Bíblia ensinava os filhos na crença em Deus que puniria os atos violentos do pai. E enquanto a descrição do que fazem se alonga, o tempo da narrativa parece ser mais curto pelo arremate fluido e rápido da construção do texto, cuja tessitura é breve e o tempo nas suas malhas adquire um valor de maior alargamento temporal, revelando assim a potência do romance de Rogério Pereira, que faz de sua narrativa ter uma polissemia de significados daquilo que se enigma nas entrelinhas da obra. Pois seu livro é feito de palavras como numa semeadura a fazer surgir momentos de beleza em meio ao chão duro da realidade: “Teríamos de aprender a ler, a escrever, a cavar a terra de papel, a semear palavras e a dissimular a vontade de retornar”.

Ao longo da obra de Rogério, a ironia face às questões da espiritualidade, unindo o concreto e o abstrato, gerando a dúvida e desamparo: “A mão de Deus é pequena para amparar tanto pecado, pai”. Eram o pai, a mãe e os três filhos, cuja ausência e incomunicabilidade ficam cada vez mais evidentes. A memória vai se desenvolvendo ao longo do narrar, já que no primeiro capítulo não se lembrava pelo espírito de flagelo que o atormentava num momento de profunda ameaça.

Há momentos no livro de forma mais sutil e sensória, que o movimento parece amenizar a dureza inicial e depois ao longo da narrativa, mesclando essas oposições, com imagens belas e fortes, em que a tensão bipolar dos abismos e eternidades revela deleites do passado que aquecem um enredo tão complexo em questões de famílias desestruturadas. A passagem entre o túmulo e um jardim florido nos faz perceber, que Rogério Pereira não quer apenas mostrar a cruel realidade o tempo todo, e nisso está sua força a dar elasticidade a mudanças que ocorrem de forma densa, invasiva, causando momentos de intensa riqueza na variedade de suas escolhas como narrador.

Vejamos os momentos de beleza lírica da mãe e do pai, para exemplificarmos o que foi dito.

A mãe e os feijões: “Acaricio as bordas da xícara e admiro os cabelos escorridos na testa da mãe. Nos sulcos do rosto corre uma enxurrada incandescente, lenta, silenciosa e triste. Queria poder ler cada traço, cada história ali acumulada. Sei tantas, mas não conheço as que mais me interessam: as histórias da mãe. Ainda não sei como dedos tão nodosos conseguem separar os restos do feijão. Deixe-o assim, implico, mas ela insiste que pelo menos o alimento deve ser puro e limpo na panela.”

O pai e as jabuticabas: “Ao retornar, abria a sacola estufada de pequenas bolinhas negras e as despejava em nós, seus filhos. A abundância da fruta recém-colhida nos causava uma felicidade a que não estávamos acostumados”.

Tanto os capítulos como as frases são curtas para ser uma metáfora para a imagem daquilo que se deteriora e se consome no “livro dos dias”: “a casa é um útero seco”. A descortinar “os demônios que a possuem”. Amor X ódio/Vida X morte, aqui não parece haver uma solução fácil para os conflitos humanos, não há uma solução fácil para o conflito do filho que narra num tom claustrofóbico, como a tentar sair das linhas fiáveis de seu próprio relato. E a presença da morte é implacável a dizer sobre a desintegração dos alicerces de uma casa que ficou arruinada pela maldade dos anos, num conflito absoluto em que se perdem os membros da família. A fatalidade dos atos grotescos cobre com a força da miséria humana num viés em que o temor e o arrependimento se coadunam. A questão bíblica como forma de mostrar a ruína familiar, tal qual num domínio dostoievskiano, do tal demônio familiar, temática que só os grandes autores souberem dominar e eis o mérito de Rogério neste livro em particular.

O problema fulcral da incomunicabilidade perpassa toda obra, apesar do endereçamento das cartas numa tentativa de reatar o nó górdio que asfixiou a todos. Para além do silêncio, o não se comunicar de nenhuma forma nos faz lembrar dos filmes de Ingmar Bergman, a voz intimista do cinema. A presença ausente se corporifica na memória e a imagem se traduz no pensamento.

Se os familiares se tornam fantasmas, incorpóreos, a corporalidade do que os envolve os faz ter contato com aspectos sensórios do ser inimagináveis. E as falas dos pequenos objetos, das grandes coisas que existem no mundo, os salvariam de um naufrágio de um pai violento, uma mãe omissa e o pecado que ele mesmo, narrador, se caracteriza pelo viés do aspecto mais sombrio de sua face que se culpa e se flagela a partir das memórias. Por não beber as águas do Lethes, o pecado se torna avassalador, mas, ao mesmo tempo, o narrador desconstrói este puzzle enganador com a ideia de remissão, ajuste ou descrença, também dos castigos divinos, quando o que só há é aniquilamento, e não-existência. O livro é uma leitura do mundo pela ótica do narrador que se fragmenta para entender o caos familiar. Os objetos falam, há toda uma fala corporal também nas imagens referidas pelo narrador. E, talvez, o que salve o filho-narrador seja a crença de que apesar de uma família destroçada como a sua, ainda há nele um valor humano para além da sordidez da culpa, ideia que acomete a humanidade com tanta fúria desde tempos imemoriais.

À guisa de conclusão, podemos dizer que o primeiro livro de Rogério Pereira, esse romance magistral, já deu seu excelente recado como obra literária, não deixando nada a dever aos grandes autores brasileiros, seus contemporâneos. Que sua obra, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no Concurso Literário Casa de las Américas e traduzida para o espanhol na Babel Libros (Colômbia) tenha cada vez mais repercussão não só nos meios literários, mas nos autores fora do âmbito do circuito da literatura, já que mesmo fazendo a referência com a linguagem, é uma obra com sua literariedade peculiar, abordando temas universais, sociais e familiares, o que dá um valor atual ao seu livro de estreia forte, impactante e poderoso.

Adentrando no seu mais novo romance, Antes do silêncio, temos um processo de descosturar estes véus nodosos da problematização da família na centralidade da figura da mãe, que sofria de câncer, dormia no sofá, com seu aspecto esquelético e que, retratada pelo narrador na sua forma mais triste, busca, paradoxalmente, a regeneração a partir da imagem de lavagem das roupas, os familiares? Tentando aprender coisas domésticas, percebe o sentido da existência naquela triste casa. O silêncio já se inaugura aqui no primeiro capítulo com cenas impactantes e fortes, com a descrição física da mãe doente do narrador. A intimidade do paradoxo parece ser o motor dessa nova obra de Rogério Pereira: “Fui à funerária. Vieram e colocaram a mãe no carro comprido. Depois, no caixão com flores de plástico. Levamos a mãe ao cemitério. Colocamos no mesmo túmulo da minha irmã — agora resumida a um saco plástico preto cheio de ossos. Quando saímos do cemitério, o sol nos aquecia. O céu bem azul. Um ótimo dia para lavar roupas”.

O narrador passa de uma cena da perda terrível numa descrição árida para a poesia na natureza, tentando amenizar uma dor profunda? Seria um dia de trabalho doméstico para sentir na pele o que sua mãe fazia? A ideia da perda, esta grande fome do mundo, é o motor desse livro, o que vemos desde o início do livro. Tamanho o sofrimento na vida da mãe é sentido pelo filho num gesto de humanidade: “A boca sem dentes na barriga se chama jejunostomia. O café da manhã, o almoço e o jantar são sempre iguais. Para minha mãe, alimentar-se é apenas uma sina.” Esta parte da narrativa retorna o antes da morte, o próprio silêncio, e aqui vemos a vida sofrida de uma senhora.

O sofá como imagem do que pode afundar, naufragar é uma metáfora para a decadência humana dessa família: “Às vezes, visito a mãe no sofá. Sento ao seu lado. Eu sempre afundo. O sofá é molenga. A mãe não afunda. O seu corpo flutua no mar de sal”. O narrador mistura, belamente, os tons ásperos e triviais a tons mais amenos e poéticos, talvez para equilibrar a dor no trapézio do paradoxo que oscila na sua mente que vaga como uma onda no mar. A mãe tinha saúde e ele nem imaginava o que aconteceria. Outro elemento revelador é o narrador descrever as cenas, os objetos, tudo ao redor de forma bem minuciosa, como um detalhista ou paisagista do real, fazendo-nos adentrar retratos do cotidiano ao longo de Antes do silêncio. Antes do silêncio, a mãe era uma excelente dona de casa, fazendo seus quitutes, como o pão caseiro: “Fazer pão é melhor do que fazer quimioterapia”. Aqui, a voz do filho e da mãe se misturam, se mesclam, num ato único do relacionamento entre eles. Por outro lado, na outra ponta do paradoxo, o quadro cruel da mãe: “É apenas uma réstia distorcida da mulher ríspida e rude que tentou colocar os filhos nos eixos. Todos descarrilamos. Ela também”. Além disso tudo, apesar desta miséria, ainda encontra espaço para o flerte com a vizinha, que tem uma filha ainda menina. Uma mulher que não é bonita e nem feia.

O narrador não usa o tempo todo uma mesma forma de narrar sobre a vida e a morte, esta não se aparenta somente à imagem solene do silêncio, mas também com coisas repugnantes que ele descreve com asco e nojo (lesmas e caramujos). E a mãe tinha um buraco, a traqueostomia, no pescoço, que era um gasto do governo a mais. Nessa parte há uma discussão social, em que o narrador faz uma referência à leitura e sua importância. O mundo do trabalho dele e dos irmãos é valorizado desde a infância. E o filho tem uma visão fatalista de seu próprio destino em meio a tudo isso, a toda tragédia que ele encontrou. Em outro momento, outro personagem, um “velho desconhecido e obcecado pelo holocausto”, que queria que lesse o mesmo livro para ele várias vezes. São essas peculiaridades, essas miudezas que fazem do livro de Rogério atingir uma dimensão grandiosa, pela forma como ele narra de forma ímpar.

Ao longo do livro e isso é importante mencionar, temos a narração dos estágios da mãe do narrador com relação à doença do câncer. Ele faz um retrato abissal da destruição que a doença causa no corpo e no ser de uma pessoa que se transforma na solidão do silêncio e da morte. Rogério soube articular com destreza e grande proeza este traço sem cair na monotonia, ao contrário, seu livro é variado, mostrando as múltiplas faces dos seres na sua relação com as coisas do mundo, com os valores existenciais, entre o que vem de dentro, intimamente, falando e o que está no exterior. Antes do silêncio, portanto, é um retrato do sofrimento e da dor num estilo marcante que recria ou salva aqueles que ficaram do silêncio pétreo do túmulo, fazendo surgir o jardim da escrita da sobrevivência. Antes do silêncio é o comunicar essa dor, o narrador se torna um sobrevivente de sua própria história, que é a memória do que ele pode contar, sem pudores ou culpas renhidas. Um viva aos romances de Rogério Pereira. Ele que soube como ninguém adentrar numa área tão delicada, mas ao mesmo tempo virulenta que é a doença devastadora do corpo e da alma. Finalizamos com um trecho da orelha do grande e premiado escritor, Paulo Scott: “Enfim, um livro denso, que confirma a trajetória sólida desse autor”.

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