Insanos — geografia alfabética, com suas raízes

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
7 min readOct 24, 2023

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por Fernando Chagas Duarte*

Fotógrafo várias vezes publicado, jornalista cultural, colunista da revista Rascunho, cronista de mão cheia. Em 2005, Ozias Filho, fundou a Editora Pasárgada (numa óbvia homenagem ao poeta Manuel Bandeira, e ao seu poema imortal), etiqueta que mantém exigente e ativa. Nascido carioca, em 1962, e em terra lusa há mais de trinta anos, primeiro no Porto, agora em Lisboa, Ozias é poeta na fineza da palavra, na pureza do olhar e da imagem, da dulcificação crua do acto. Entre outros trabalhos e intervenções poéticas, Insanos (Edições Húmus, 2023), é o seu sexto livro de poesia.

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Este Insanos é, assim deve ser considerado, uma obra poética especialmente depurada, burilada com esmero e afecto. Nele se percorre aquela montanha-russa que o autor constata da vida, como num filme luminoso em sala escura, onde a sua poética pulsa os momentos inconstantes, os sobe-e-desce abruptos que a existência de cada um implica: são castigos e expiações, picos e nadas de luz, lentidões ásperas, doçuras e criações, que Ozias Filho tão bem sabe seduzir, que talvez se encontrem, é bem possível, entre as insanidades que nos povoam.

Se o seu estilo é identitário — há aqui múltiplas referências, distintos estratos, como camadas de uma cebola — encontraremos vozes diferenciais, onde se descortina uma particular geografia alfabética com suas raízes: subsiste um requinte estilístico onde o Autor opta por uma qualificada opção do quotidiano e de suas subtilezas. Que descobrimos, desde logo, entre um pequeno poema de magníficos versos:

à tona/ o relevo dos edifícios/ :/ geografia alfabética/ com suas raízes

Lírica composta com textura e mestria, feita de silêncios, e palavras elementares, moldada entre aquela sociologia mais complexa e um sentimento mais profundo, encaramos neste livro uma verbalização do imaginário, ecos, emoções e histórias que permanecem connosco.

Digamos então que, se cada indivíduo tem a sua forma peculiar de ver o mundo, de o perceber, já o fotógrafo tem a sua forma distinta de o registar, porque este artista — talvez deva dizer todo o artesão, escritor, poeta — precisa de atravessar aquela incompreensível linha que vai do desejo incontrolável de criar, contar histórias e aquilo que representam. Creio ter sido por isso que nos entregou, como slides coloridos, projetados na parede branca de um velho muro, histórias de vida (a remeter para a psicanálise, quando as designou divã sob medida), que são trechos na primeira pessoa, testemunhos assumidos sob a forma de crónicas e justificação, marcados num mapa de uma lusitanidade comum, que vai de Macau a Moçambique, por todo o continente português e brasileiro, chegando a Toronto, a Paris e Buenos Aires. E ao Porto aqui tão perto, assim mesmo, com a voz inigualável de Sérgio Godinho a soar-me na cabeça.

Aquelas são vozes de transeuntes tristes, personagens que ecoam o destempero de uma certa solitude ficcional, por detrás do que é absolutamente real. Encontramos nesta intercalação textual, um possante senso narrativo que nos entrega um significado pessoal do seu olhar e ver; eis a realidade banal do mundo, diga-se que com acento tónico, e contextualização, a aproximar-se do dizer jornalístico da coisa; que gera, enfim, uma certa ruptura com o inevitável mito do Destino.

Em Ozias Filho, encontramos a cidade, tema recorrente, e o urbano, a filigrana da história, também as estórias, a colisão social, o desígnio, o espaço cénico, a sensualidade, a amizade, tanto no âmbito individual, quanto no coletivo das pessoas.

Descobrimos, verso seu, a natureza que espreita tímida, a traduzir-se no corolário metafórico onde o real fica fora da janela. Ouçamo-lo por instantes, recorrendo ao seu livro prévio Os cavalos adoram maçãs (Editora Urutau, 2023), naquele poema chamado Notícias da Eternidade:

afinal deus não é do género masculino

os preços dos imóveis no paraíso estão proibitivos/ será da vista?

os pobres vivem no inferno.

Ou no díptico sem título, do mesmo livro: o universal é/ local sem muros.

Como tão bem titulou Ronaldo Cagiano, no seu prefácio de Insanos, estamos perante A fotopoesia de um observador inquieto, de uma poética que conjuga luminosidade e transcendência. É bem verdade que são pequenos fotogramas repletos de misteriosas ressonâncias, órbitas que nos indagam e perseguem até ao âmago, como neste mínimo/enorme poema:

um segundo basta/ para libertar o aço/ …

o passo

que nos pisa/ a sombra.

Ouçamo-lo outra vez, o mesmo poema, em marcação distinta (reticências minhas):

um segundo basta…

para libertar o aço, / o passo que nos pisa …

a sombra.

Onde focámos os olhos primariamente, quando lemos/ouvimos aquele poema, de Insanos?

Na sombra? no aço? O passo que nos pisa? O Poema dá-se à leitura polifónica, diferencial, penetrante; camada após camada, como na tal cebola que vamos abrindo, a exigir do leitor muito mais que a mera leitura da superfície. Eis como se nos apresenta aqui, porque se trata de fotografia, o célebre punctum de Roland Barthes, também ele fotógrafo, no seu livro A Câmara Clara, de 1980.

Recordando: punctum é o que Barthes designou para aquele detalhe que corta a foto e centra intuitivamente a atenção — podendo até ser um alvo em movimento, porque se pode alterar aquele foco de atenção de um pormenor a outro, na mesma imagem. Sendo Ozias, igualmente jornalista e fotógrafo, peles aliás que nunca despe na totalidade, não há como evitar esta alusão.

Para o Autor, do precioso O Relógio Avariado de Deus (Edições Paságarda, 2011), como em Insanos, outro tema recorrente, e de forte presença, é o da indagação da Mãe, palavra universal, polissémica, na explicação de Albano Martins, constante aliás da antologia A Mãe na Poesia Portuguesa.

Em Ozias, não são necessariamente as Mães concretas e extremas, como em Herberto Hélder (No sorriso louco das mães batem as leves/ gotas de chuva. Nas amadas caras loucas batem e batem/ os dedos amarelos das candeias./ Que balouçam. Que são puras., (…) /). Talvez mais afastado ainda, sem esticar quaisquer comparações inconvenientes, de Sebastião da Gama ou Natália Correia, onde a figura materna surge como a grande metáfora. Porventura mais próximo da mãe ansiada pelo amor filial, como em Eugénio de Andrade (Não me esqueci de nada, mãe./ Guardo a tua voz dentro de mim./ E deixo as rosas.// Boa noite./ Eu vou com as aves).

Não, dir-se-ia que em Ozias, ao guardar no seu interior a voz materna, há a procura de uma certa maternidade eternizada, de um feminino, mais ideia do que carne, tão próxima do Belo quanto do Infinito, ideia tão íntima da memória que a partir dela se desfaz. Recordo o trecho poético, incluído ainda n’ O Relógio Avariado de Deus:

a casa com desenhos pueris/ vive nos dedos de uma criança/

mas esta já não é a minha casa.

Para o Autor, o apelo da Mãe é multifacetado, como quando afirma, em Insanos:

minha mãe índia, / branca cabeleira, à direita da mesa/

lembra-nos que ainda não largamos as fraldas

A referência maternal é algo que se constrói desde a epígrafe inicial, expressa ali naquela ternura possível que a distância, ou o tempo, impõem:

o que herdei da família: as barras da saia da mãe

e vai até à epígrafe final, com a qual, de facto, encerra o livro e nos abre perspectivas psicológicas profundas:

a minha mãe morreu/ agora já posso ser homem.

Numa mundividência plural, em Insanos, o tempo marca o compasso das narrativas que intercalam a obra, o poema completo. O silêncio é invocado como sombra, inevitável, omnipresente. Deparamo-nos com personagens vivos, localizados geográfica e temporalmente, personagens sob diálogos constantes. Com a voz do Outro a tornar-se a nossa.

Poesia, diálogo, imagem. Entre trilhos pessoais, íntimos, sentimos que há por ali uma solidão autoral, necessária, mas que, pese tudo, não há qualquer isolamento do mundo, como aquele que foi referido por Hanna Arendt, que insiste que a solidão será sentida no extremo como uma não pertença ao mundo, ou seja, como uma das mais desesperadas e radicais experiências do indivíduo.

Invocar Arendt serve como pretexto para consolidar em Ozias Filho a sua ideia fundamental de Arte: deve, afinal, a Arte ser o baluarte contra a solidão e ser a sua panaceia, nutrindo e cultivando as nossas relações com o Outro, entre nós e para nós mesmos — e, já agora, diga-se, a sê-lo de modo complementar, tanto para aqueles que a experienciam como para aqueles que a procuram e a fazem. Definitivamente, em Ozias Filho, escritor, poeta, criador de imagem, a Arte surge a partir do olhar, do seu particular ver do mundo, sem constrangimentos, sem ambiguidade. Porém, a Arte em Ozias é multifacetada, senão ouçamo-lo mais uma vez

o chão desconstruído/ a cada pegada/ o pó muda o lugar/ da memória.

Resumindo, para quem ainda não entrou na Obra que vai gerando, explicite-se que a poética ozíaca se entrecruza, sistémica, com a imagem. Transforma-se em crónica imagética, como se houvesse apenas um livro de fotogramas para construir, em provável frente e verso, alfa e ómega, livro ilustrado por palavras em poema e infinita humanidade. Assistimos em Ozias, no que não é novidade desde o início da sua produção literária, à criatividade posta ao serviço de Todos.

E é caso para perguntar: estamos perante um fotógrafo munido de poesia até ao tutano ou um poeta carregado — como o bêbado de Manoel de Barros — no olhar singular do fotógrafo? Um fotógrafo-poeta ou o seu mavioso, vice-versa? Haverá sequer distinção entre ambos? Insanos, quem?

Decerto o Autor nos poderá explicar de viva voz: releia-se a Obra, descubra-se.

Lisboa, Outubro 2023

* Fernando Chagas Duarte (n.1964, Lisboa), geógrafo, escritor, poeta, fotógrafo amador, viajante do mundo e das particularidades. Autor de seis livros de poesia, publicados entre 2014 e 2023, e do romance No fim de um lugar (Ed. Kotter, 2022), tem participação em cerca de duas dezenas de colectâneas poéticas e revistas literárias de vários países.

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