Ed Caliban
3 min readJul 5, 2020

Hoje resolvi sair de casa para não pensar em nada disso

mas nada disso fica em casa quando saio.

Enquanto caminhava, qualquer coisa à minha volta,

a superfície o ar as camadas de vida fora do edifício,

projetava cada pequeno aspecto

da sua existência. Quer dizer

já não o vejo já não o via

em nenhuma das cenas que me rodeavam,

as coisas não mudaram muito

depois que ele se foi. Não o vejo

conforme atravesso a rua reparando

nas árvores nos prédios nos muros

e no homem que sorri enquanto atravessa a rua

de cabelo raspado camiseta preta e tatuagens.

Não o vejo mais nem mesmo hoje

mais cedo quando resolvi sair de casa

e quase fui atropelada.

Foi assim que isso terminou.

Na verdade, as coisas mantiveram-se as mesmas.

Continuamos a comer as mesmas comidas de antes

só que em bairros diferentes.

E nem isso é uma grande novidade. A morte

como sempre era um telefonema

uma poltrona vazia ou um quadro do Chagall

em que não podemos decidir se um homem

que sorri estendendo o braço para cima

agarra-se a uma mulher de vestido rosa

como a um balão

ou se é ela que se prende a ele

como a uma pedra.

Sem que seus olhos se abram

o apetite o faz soar como o alarme

do despertador. Depois que seu primeiro grito

ecoa entre o verde excessivo das paredes

minha voz comemora sua chegada

tal peça nova num museu de quinquilharias

que assombra minha insegurança e não me deixa

dormir. Fico ao seu redor refletindo o aparecimento

e flutuando no hálito da bomba de sucção. Acordo

enquanto ouço um ouriço que se agita. Depois outro grito

e tropeço devagar no seu chamado. Mesmo sem me ver

sua boca se abre e tudo fica branco.

A única coisa que estou tentando dizer é

que as estações continuavam como antes:

acordar correr ensaiar cozinhar

ir ao banheiro separar as roupas preparar

a mudança fazer o que for necessário

fazer a lição de casa jantar e dormir

até a manhã seguinte. Nada disso

significava estar sozinha.

O que significava estar realmente sozinha

era o velho de olhos anestesiados continuar lá

a casa cheia de gente continuar lá

a camiseta azul continuar lá sem que nenhum deles

pudesse entender o que se passava.

E eu sem perceber que nada disso importava.

Gostava de ir ao aeroporto

do centro sentar tomar café

e ver os aviões, sobretudo vê-los decolar

e perceber que aquele avião que acabou de partir

estava mais longe do que imaginava

até que um homem sentado ao meu lado dissesse

Ele está tão longe quanto parece.

Continuo sentada à mesa com a pequena xícara

entre as mãos me perguntando se aquele avião

estaria mesmo tão longe quanto parece

enquanto ele se afastava cada vez mais

e cada vez de forma mais sutil e silenciosa

até que só visse um ponto fugidio entre as nuvens.

E depois outro avião.

Não sei o que aconteceu de fato.

Sempre pensei que essa morte

chegaria por volta dos noventa numa cama

minimamente confortável rodeada por poucas pessoas

preocupadas. Mas naquela noite percebi que havia sido

expulsa do processo. Como se a partir de agora vagasse

por uma terra distante ou aguardasse ser atendida

numa sala de espera ou passasse o dia num velório

depois de vomitar alguma coisa

de manhã até a noite.

Anotei esses lugares-limite

terra distante e sala de espera

num pedaço de papel. Tinha vinte e três anos.

Nunca esqueci a data que ele morreu

nunca anotei num pedaço de papel.

E acho difícil que um dia poderei apagar

da memória. Toda vez que o vejo,

digo, este papel este lugar este número

me obrigo a viajar

ou pelo menos a sair de casa.

Lançando o olhar um pouco adiante,

para ver além da trepidação, começo a cavar

ali mesmo corpos de tempos diferentes.

Uma menina que parecia comigo me observa,

apenas uma garotinha de oito anos

que se masturbava numa foto e depois

outra mais velha com um gato no colo.

As três olhavam para mim ao mesmo tempo

sem tempo nenhum. A criança que não parava

de se tocar foi levada para um mapa desenhado

sem poder fugir correndo.

Passo muito tempo em casas desconhecidas

vendo fotos de gente que não sei quem é.

Depois de certo tempo, dias longos,

estou cansada da conversa mas fica uma frase

daquela garotinha

Eu era tão pequena que até cresci um pouco.

Mas não é verdade. Ela não se sentia bem,

tinha dor na garganta e uma pressa sem efeito

feita de planos vagos. Ela nunca partia de verdade

e quando chegou ninguém estava em casa.

Ed Caliban
Ed Caliban

Written by Ed Caliban

Uma revista de letras, artes e ideias.

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