Hoje resolvi sair de casa para não pensar em nada disso
mas nada disso fica em casa quando saio.
Enquanto caminhava, qualquer coisa à minha volta,
a superfície o ar as camadas de vida fora do edifício,
projetava cada pequeno aspecto
da sua existência. Quer dizer
já não o vejo já não o via
em nenhuma das cenas que me rodeavam,
as coisas não mudaram muito
depois que ele se foi. Não o vejo
conforme atravesso a rua reparando
nas árvores nos prédios nos muros
e no homem que sorri enquanto atravessa a rua
de cabelo raspado camiseta preta e tatuagens.
Não o vejo mais nem mesmo hoje
mais cedo quando resolvi sair de casa
e quase fui atropelada.
Foi assim que isso terminou.
Na verdade, as coisas mantiveram-se as mesmas.
Continuamos a comer as mesmas comidas de antes
só que em bairros diferentes.
E nem isso é uma grande novidade. A morte
como sempre era um telefonema
uma poltrona vazia ou um quadro do Chagall
em que não podemos decidir se um homem
que sorri estendendo o braço para cima
agarra-se a uma mulher de vestido rosa
como a um balão
ou se é ela que se prende a ele
como a uma pedra.
Sem que seus olhos se abram
o apetite o faz soar como o alarme
do despertador. Depois que seu primeiro grito
ecoa entre o verde excessivo das paredes
minha voz comemora sua chegada
tal peça nova num museu de quinquilharias
que assombra minha insegurança e não me deixa
dormir. Fico ao seu redor refletindo o aparecimento
e flutuando no hálito da bomba de sucção. Acordo
enquanto ouço um ouriço que se agita. Depois outro grito
e tropeço devagar no seu chamado. Mesmo sem me ver
sua boca se abre e tudo fica branco.
A única coisa que estou tentando dizer é
que as estações continuavam como antes:
acordar correr ensaiar cozinhar
ir ao banheiro separar as roupas preparar
a mudança fazer o que for necessário
fazer a lição de casa jantar e dormir
até a manhã seguinte. Nada disso
significava estar sozinha.
O que significava estar realmente sozinha
era o velho de olhos anestesiados continuar lá
a casa cheia de gente continuar lá
a camiseta azul continuar lá sem que nenhum deles
pudesse entender o que se passava.
E eu sem perceber que nada disso importava.
Gostava de ir ao aeroporto
do centro sentar tomar café
e ver os aviões, sobretudo vê-los decolar
e perceber que aquele avião que acabou de partir
estava mais longe do que imaginava
até que um homem sentado ao meu lado dissesse
Ele está tão longe quanto parece.
Continuo sentada à mesa com a pequena xícara
entre as mãos me perguntando se aquele avião
estaria mesmo tão longe quanto parece
enquanto ele se afastava cada vez mais
e cada vez de forma mais sutil e silenciosa
até que só visse um ponto fugidio entre as nuvens.
E depois outro avião.
Não sei o que aconteceu de fato.
Sempre pensei que essa morte
chegaria por volta dos noventa numa cama
minimamente confortável rodeada por poucas pessoas
preocupadas. Mas naquela noite percebi que havia sido
expulsa do processo. Como se a partir de agora vagasse
por uma terra distante ou aguardasse ser atendida
numa sala de espera ou passasse o dia num velório
depois de vomitar alguma coisa
de manhã até a noite.
Anotei esses lugares-limite
terra distante e sala de espera
num pedaço de papel. Tinha vinte e três anos.
Nunca esqueci a data que ele morreu
nunca anotei num pedaço de papel.
E acho difícil que um dia poderei apagar
da memória. Toda vez que o vejo,
digo, este papel este lugar este número
me obrigo a viajar
ou pelo menos a sair de casa.
Lançando o olhar um pouco adiante,
para ver além da trepidação, começo a cavar
ali mesmo corpos de tempos diferentes.
Uma menina que parecia comigo me observa,
apenas uma garotinha de oito anos
que se masturbava numa foto e depois
outra mais velha com um gato no colo.
As três olhavam para mim ao mesmo tempo
sem tempo nenhum. A criança que não parava
de se tocar foi levada para um mapa desenhado
sem poder fugir correndo.
Passo muito tempo em casas desconhecidas
vendo fotos de gente que não sei quem é.
Depois de certo tempo, dias longos,
estou cansada da conversa mas fica uma frase
daquela garotinha
Eu era tão pequena que até cresci um pouco.
Mas não é verdade. Ela não se sentia bem,
tinha dor na garganta e uma pressa sem efeito
feita de planos vagos. Ela nunca partia de verdade
e quando chegou ninguém estava em casa.