Fragmentos da vida suburbana

Ed Caliban
Revista Caliban issn_0000311
4 min readOct 28, 2023

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Micro-histórias de Dalton Trevisan confirmam o curitibano com um de nossos grandes contistas

Pedro Maciel

No ensaio” Valorização do conto breve”, Edgar Allan Poe anota que “no conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for”. “Durante a hora de leitura atenta”, diz ele, “a alma do leitor está sob o controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte no cansaço ou interrupção”. Essa reflexão de Poe parece traduzir perfeitamente o livro Ah, é?, de Dalton Trevisan, ed. Record. Aliás, toda a obra do autor de Pão e sangue (1988) é composta de textos breves. Esse é talvez o momento ideal de um dos melhores escritores brasileiros surgidos nos anos 60. É o momento dos críticos literários, infiltrados nas redações dos jornais, reconhecerem em Dalton Trevisan o grande contista que, como Murilo Rubião ou Clarice Lispector, produziu uma obra de destaque nesse gênero da literatura brasileira contemporânea.

No prefácio do livro O vampiro de Curituba (1965), Trevisan já apontava o destino de seu texto: “Há o preconceito de que depois do conto você deve escrever novela e afinal romance. Meu caminho será do conto para o soneto e dele para o haicai.” O miniconto, a mini-história escritas por um mestre do instantâneo, mestre em escrever o mesmo conto. No texto Quem tem medo de Vampiro?, ele anotou: “(…) Quem leu um conto já viu todos. Se leu o primeiro já pode antecipar o último _ antes mesmo que o autor”. Na realidade, a, leitura de um dos contos de Trevisan é sempre uma releitura.

Vários contos relacionam-se com outros, principalmente pela temática. O autor apresenta um texto dentro do outro, num ciclo infinito de situações patéticas, criando uma atmosfera de realidade absurda, mas possível. O que não quer dizer que Trevisan se repete. Na vida, apenas um instante, já é o bastante para que nada seja como antes.

Trevisan narra a vida suburbana de Curitiba, dá vida aos personagens mais banais, tarados que perambulam em busco de sexo. O sexo é a linguagem que explica os personagens. Prostitutas desencantadas, pederastas profissionais, escravos de corações, amantes de estrelas derrubadas, velhos enlouquecidos por cartas de amor, jovens bêbados de paixão, e outros malucos de coração partido pelo amor freqüentam a cidade-bordel de Trevisan. O autor narra os amores infernais, indesejáveis: “Na cama o João vem pra cima de mim. Uma transa lá entre ele e a minha perna, não estou nem aí”.

Além da solidão, nota-se uma violência que ultrapassa a compreensão, apesar de que o autor deixa claro que não é necessário compreender esses personagens de classe média baixa, marginalizados, periféricos. O sexo é a única experiência possível entre eles: “O falo ereto _ única ponte entre duas almas gêmeas”.

A realidade familiar e banal, anônima e brita, cruel e apocalíptica desfaz o mito do amor eterno. Não há amor eterno entre os personagens de Trevisan. Quase sempre uma paixão doida com suas línguas de fogo recupera a serenidade primitiva, ao combinar atração física e confluência espiritual. Não há encontro espiritual entre Joões e Marias (personagens trágicos que atravessam toda a obra de Trevisan), e sim atração física, sede de sexo. O sexo é a ordem do dia, negócio de bruxas e vampiros.

Trevisan é um narrador que guia o leitor rumo à ficção. Mas nada que não esteja nos interstícios da realidade. Toda a literatura aspira ao fictício. Geralmente o narrador é um argumentador que revela esse mundo e cria outro; livre de entendimento e limitações. Trevisan não segue a narrativa tradicional. Não há argumento ou enredo em suas histórias. É como se os personagens só possuíssem sensações sem pensamentos, e buscassem a todo momento atravessar o aparente mundo real, ao mesmo tempo inconsistente e impenetrável. Mas os personagens de Trevisan sonham alto, e caem, e na queda dão sentido à vida.

O amor de João, o amor de Maria, o amor de Trevisan. O verdadeiro tema desse escritor _ que não dá entrevistas e não se deixa fotografar _ é certamente a forma que ele encontrou de identificar-se com o outro. O que conta em Trevisan é o estado de miséria e dor da existência _ existência que é algo mais que passagem, é o estado do homem e da mulher assombrados entrando na órbita do coração, é o estado de solidão dos amantes cegos que passam uma longa temporada no inferno.

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Quem lhe dera o estilo do suicido no último bilhete.

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Chorando baixinho, o velho disca todas as combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa.

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A velhinha meio cega, trêmula e desdentada: _ assim que ele morra eu começo a viver.

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O coração da bem querida: oco de pau podre, aqui floresce aranha, serpente, lacraia de fogo.

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Por que não me enterra a faca no coração? É mais perversa. Corta uma lasquinha, mal sai sangue. Outro tantinho, rasga gentilmente. Cada dia, na picada do relojoeiro, arranca um fio de pele. Olhe para mim, assassina. Tudo em carne viva. O corpo inteiro esfolado. E você, lambendo as unhas, impune. É o criem perfeito.

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_ Com essa megera não é que eu casei.

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_Me destraí um instante, a mulher foi trocada.

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_ Em vez de noivinha dos meus sonhos, essa quem é, roncando ao meu lado, o bigodinho de meu sogro no nariz torto de minha sogra?

Pedro Maciel é escritor, jornalista e artista visual, autor de “Retornar com os pássaros”, ed. LeYa e “Diário perdido de Shakespeare”, Ed. Iluminuras, entre outros.

Publicado originalmente no Jornal do Brasil, caderno Ideias/Livros, sábado, 9 de setembro de 1994

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