Entrevista com Evelyn Blaut-Fernandes

Ed Caliban
10 min readJan 6, 2021

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Por Andrei Oliveira

Evelyn Blaut-Fernandes é escritora, tradutora e pesquisadora. O seu primeiro livro de ficção, As dezenove regras do romance policial, foi publicado pelo Selo Demônio Negro, em São Paulo, no final de 2018. Nascida no Rio de Janeiro, em 1981, é formada em Letras, doutora em Literatura Portuguesa com uma tese sobre a obra António Lobo Antunes e, no momento, desenvolve a sua segunda pesquisa de pós-doutorado. A leitura e a escrita, seja acadêmica, ensaísta ou ficcional, sempre estiveram presentes na sua vida. Concedeu esta entrevista a Andrei Oliveira, também formado em Letras e crítico literário.

Como foi o seu primeiro contato com o mundo dos livros? Na década de 1980, vivíamos num mundo com uma herança sexista muito mais evidente do que hoje e para mim sempre foi curioso ver a minha mãe sentar para ler. Digo curioso não só porque ela era a única mulher na minha infância que me deu essa oportunidade, mas porque, de fato, essa imagem aparentemente simples me despertava curiosidade. Venho de uma família que tem muitas professoras e professoras que não leem ou que não liam. E a minha mãe, embora não fosse professora, não era dessas mulheres que estão sempre de pé ou obcecadas com a limpeza da casa. Ela se sentava no sofá para ler. Além disso, a minha madrinha costumava me contar histórias para dormir. Estas duas mulheres, estas duas imagens, foram elementos primordiais para a minha formação não só como leitora, mas como ser humano.

Qual foi o primeiro livro a marcar a sua trajetória? Ao contrário da maioria das casas que frequentava quando criança, a minha casa sempre teve uma grande estante na sala cheia de livros. E era uma estante com uma arca embaixo, de modo que havia os livros que podiam ser vistos e os livros que ficavam guardados. Obviamente, preferia a parte debaixo da estante. Havia ali escondida uma enciclopédia geral do sexo, dividida em quatro volumes. Talvez tenha sido este o primeiro livro que li na adolescência, não me recordo. A partir de então, desenvolvi o hábito e o gosto de escrever às escondidas. Depois, passei a folhear os livros da parte de cima da estante, como os da Agatha Christie. Um pouco mais tarde, descobri Emily Dickinson e Juan Rulfo, que foram, sem dúvida, os autores fundadores do meu percurso como leitora.

Quem foram os outros autores que a influenciaram? Talvez por se tratar da escrita do primeiro livro, me permiti ser influenciada e, mais do que isso, fiz questão que as influências ficassem evidentes, porque isso para mim era uma forma de elaborar uma filiação ou de compor uma espécie de genealogia. Fui influenciada por muitas formas, não só pela literatura. De Duchamp a Lou Reed e Marlene Dietrich, por filmes noir e exploitation, mas Luís de Camões e Luiza Neto Jorge são, sem dúvida, os poetas portugueses fundamentais na minha formação acadêmica.

Com uma trajetória tão tímida quanto a autora, o livro, no entanto, não tem nada a ver com um romance policial. De onde veio a ideia deste título? Os títulos podem ser uma espécie de batismo, uma tentativa ou uma necessidade que nós temos de nomear as coisas, mesmo que às avessas. Este título é uma quantidade de coisas e, ao mesmo tempo, uma provocação. Depois que a maioria dos textos ou dos fragmentos já estavam organizados, encontrei um dia, por acaso, numa biblioteca, um livro intitulado As vinte regras do romance policial. Morava em Portugal nessa época. O título é, portanto, uma apropriação descarada de um livro que dá instruções metódicas de como se construir um determinado tipo de literatura. Creio que a opção pelo “menos um” — dezenove — possa indicar tanto uma desapropriação quanto a falta ou o desmembramento, a perda de membros, o luto e a luta contra a morte — ou contra os vários tipos de morte — de que trata o livro, além de ironizar as histórias de detetives e a própria ideia de regras estabelecidas e seguidas como mandamentos, especialmente em espaços conservadores que entendem e tratam a literatura de uma forma rígida com classificações e periodizações.

Esse livro foi escrito em Portugal, em 2015, mas só foi publicado no Brasil em 2018? Sim, passaram-se três anos. Um pouco menos, na verdade, dois anos e alguns meses. Preciso me distanciar e depois voltar e rever os textos. Esse retorno aos textos, para mim, é sempre a parte mais difícil justamente porque é a etapa mais obsessiva do trabalho. Da primeira versão que escrevi até a publicação deste livro foi um percurso com muitas alterações. Cortei muita coisa, trechos e textos inteiros, entraram outros. Depois da reescrita, há um terceiro momento em que é preciso dizer chega e se afastar de vez do livro.

Você mencionou a Luiza Neto Jorge, uma poeta portuguesa que produziu entre as décadas de 1960 e 1980. Você também tem artigos publicados sobre a sua obra? Luiza Neto Jorge é uma das minhas poetas favoritas, que não me canso de ler e reler. Voltando à sua pergunta sobre o título, ele é já um puzzle de referências ou de camadas de referências, literárias e pessoais. Ele faz alusão aos Dezanove Recantos, livro em que Luiza Neto Jorge propõe uma releitura do maior poema épico da literatura portuguesa, que são Os Lusíadas. Mas, ao mesmo tempo, me refiro à morte do meu irmão, que era policial, e morreu muito jovem, ao 31 anos, no dia do seu aniversário. Nós estávamos preparando um churrasco e, enfim, não houve churrasco [pausa]. De fato, esse livro tem muitas referências biográficas e a mim particularmente é muito cara a possibilidade de criar camadas de referências e interferências.

Todo o livro parece mesmo um puzzle de referências. Mas um dos poemas me chama a atenção. Como foi o processo de criação de “medula”? “medula”, a princípio, é uma apropriação de uma canção da [cantora islandesa] Björk que se chama “Virus” do álbum Biophilia [2011]. Enquanto escrevia o livro e ouvia bastante este álbum, me lembrei de uma consulta com o oncologista da minha mãe, que teve leucemia, me lembro vagamente do consultório todo branco, mas me lembro bem dele meio sem saber como explicar para uma garota de dezenove anos o que estava acontecendo. Fazia faculdade de dança contemporânea, nessa época, em 2001, então, para mim, o uso de termos técnicos para tentar lidar com aquela situação de uma forma objetiva e o fato de ele evitar as palavras câncer e maligno, aquilo tudo era muito estranho. As palavras que ele escolhia para me explicar eram absolutamente ininteligíveis. Até que, em determinado momento, eu disse: “eles roubam” e ele disse: “sim, eles roubam” [pausa]. Depois disso, ela foi internada e eu, como única acompanhante, morei três meses no hospital com ela, que passava, com alguma frequência, por exames bastante invasivos na medula.

É daí que vem o título “medula”? É daí que vem toda a ideia do livro, não só dessa experiência pessoal, que foi um turning point na minha vida, mas da própria ideia do roubo e da apropriação como método de escrita. Quer dizer, não só me apropriar de textos e formas já existentes, uma prática tão antiga quanto a própria escrita, mas uma tentativa, desde já frustrada, de roubar alguma vida à morte.

Como seria roubar vida à morte? Pois, é algo impossível. Por exemplo, alguns escritores dizem que escrevem porque precisam, porque têm necessidade de escrever. Não tenho necessidade de escrever, tenho necessidade de matar, é isso o que me dá prazer. E a minha forma de matar é escrever. É claro que estamos falando em termos simbólicos, quase gregos, e esse ato de matar é, no fundo, um jogo ou, se preferir, uma tentativa de negociação com a morte, como aquela célebre cena do Bergman. Às vezes, só consigo compreender algo depois que escrevo. E escrever não significa desenhar letras num papel, mas copiar, transcrever, alterar a ordem das frases, alterar a ordem das coisas, riscá-las, cortá-las, ou seja, destruir para construir.

E como você lida com essas questões hoje? A maioria das questões que esse livro levanta para mim já passaram, não são coisas que me mobilizam mais, ou pelo menos são questões para as quais consigo olhar com outros olhos, sem precisar tê-los furado, o que já é muito. Olho inclusive para o próprio livro com outros olhos, já nem gosto mais dele.

A questão da violência está marcada em diversos aspectos, sobretudo na conta em “menos um” do título. Geralmente, a violência sugere alguma hipérbole, algo exagerado ou chocante, ou vem acompanhada de uma tragédia, mas esse “menos um”, que indica uma falta ou até um Phantomschmerz, aponta uma contradição. Talvez o livro todo também seja bastante contraditório e, nesse caso, sim, desde o título.

Mas a violência é a coisa mais imediata ou impactante que esse livro provoca, é um livro bastante violento… Embora tenha sido o primeiro, é um livro de ruptura, um livro de despedidas ou um ritual de passagem, se preferir. É um livro de ruptura em muitas instâncias, um livro de muitas rupturas e que traz à tona temas pesados e tabus. Portanto, é um livro violento porque precisava de ser.

Uma ruptura evidente com uma figura paterna… Os meus avós saíram do norte de Portugal e vieram para o Brasil com nove filhos em 1938. O meu pai era o mais novo deles, um bebê de apenas um ano. Quando ele morreu, eu tinha seis anos e demorei muito tempo a entender o que estava acontecendo, o que havia acontecido comigo. Obviamente, por causa da relação violenta entre os meus pais que eu costumava testemunhar, eu já havia, vamos dizer assim, rompido com ele. Mas, à medida que ia procurando compreender a sua ausência, fui fundando um desejo, quase uma obsessão, que era a de ir para Portugal. Mas eu queria morar em Portugal, jamais poderia estabelecer uma relação de turista ou de passante com esse lugar. Então, consegui uma bolsa de doutorado pleno no exterior e fui viver lá e conhecer o lugar de onde ele veio. O doutorado correu bem, a tese foi publicada, mas o que mais me importava era ir para lá e estar lá. E estive durante quatro anos. Conto tudo isso, porque, além de ter vivido em Portugal, esse livro também foi escrito lá. E, em alguma medida, ele não trata da minha ruptura com o meu pai, mas, mais uma vez, de uma tentativa de ruptura com esse não saber o que fazer com a morte dele. Por um lado, foi uma maneira de fazer as pazes; por outro lado, foi uma das melhores coisas que fiz na vida, porque, como em toda boa viagem, a gente nunca encontra aquilo que procura.

Muito da força do que você escreve vem de situações da infância… A minha infância foi muito contraditória. Gostava muito de estudar, mas odiava a escola, era uma escola de freiras. Só tirava notas altas mas só andava com os outsiders da turma, os que sofriam bullying, numa época em que ninguém falava sobre isso: um menino gay, uma menina negra e uma menina que havia repetido de ano. Eles eram isolados e eu era a única que falava com eles na sala, nós costumávamos passar os recreios juntos. Depois, a uma certa altura, minha mãe me colocou num curso de modelo, que eu também odiava, fiz book e essas chateações todas enquanto tomava biotônico foutoura. Quando você faz um curso de modelo, a primeira coisa que te ensinam é a andar, você tem que saber desfilar, que nada mais é do que andar. Depois, na faculdade de dança, na primeira aula de corporeidade, você aprende a andar, a perceber e a ter consciência da integração do seu pé com o solo e todas as possibilidades de movimento que nascem desse contato. O percurso desse livro tem um pouco a ver com isso também, com reaprender a fazer algo que, a princípio, você sempre soube, como numa sessão de fisioterapia. Tem a ver com descobrir novas possibilidades de movimento e deslocamento. Essa reaprendizagem ou reavaliação, nesse livro, fica muito evidente através do ritmo, que mais parece uma sequência de tropeços. Então, além de ter me transformado numa pessoa absolutamente contraditória, sempre me senti, onde quer que fosse, uma espécie de outsider. Tentei transformar essa sensação de estar deslocada no mundo na própria ideia de deslocamento que estrutura o livro. Hoje consigo lidar bem com essas contradições, e até com humor, mas para uma criança não é nada fácil.

Você falou em humor, o seu livro tem um humor meio irônico, meio sarcástico… Além das imagens exploitation, o livro também tem essa provocação ou essa proposta que é a de não se levar a sério. Desde o título até a organização da mancha gráfica. Não gosto de caixas nem de muros. E, de repente, se você não estiver muito disposto a perceber algumas contradições, pode se deixar levar pelo que está escrito na capa ou pelos blocos que não são a forma convencional do poema, mesmo em versos livres, e de uma pontuação que troca pontos e vírgulas por barras, ou seja, muros. Naturalmente, essa ideia me ocorreu justamente quando frequentava espaços que valorizam um determinado tipo de catalogação. Neste sentido, se o título não dá pistas claras do que você vai encontrar, pode ser bem decepcionante para o leitor. Ainda hoje ouço Ah você escreveu um romance policial. De certa forma, o título e o próprio livro questionam a tendência da obviedade, do literal e das convenções.

Você pretendia quebrar algumas regras? Ao mesmo tempo em que tentei elaborar algumas questões familiares, procurei estabelecer um diálogo que não se insere apenas na autoficção, mas parte para uma abordagem literária mais ampla. Entre outras coisas, este livro levanta discussões sobre os limites éticos da literatura, os limites da apropriação e do roubo na literatura. Mas o que me interessa é o processo de escrita como exercício de libertação. O meu trabalho com relação a este livro está feito, está pronto, está acabado. Já me libertei dele. Não pretendo voltar a ele nem a questões que ele suscita. Sinto como se tivesse fechado um ciclo e isso também me dá muito prazer.

Se você pudesse defini-lo em uma palavra, qual seria? [risos] Bem, de certo modo, esse livro é uma farsa, mas uma farsa séria que faz um convite a repensar as tradições e as rupturas. Ele não faz referência explícita apenas à arte obscura de ladrões que roubam ladrões, mas ao meu fascínio pela ideia de profanação.

Voltou a escrever depois de As dezenove regras? Tenho saudades de ter tempo para a escrita. As coisas para mim hoje são diferentes do que eram quando escrevi este livro.

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