Conexões Rizomáticas e Apelos sinestésicos: Sobre A Sombra que Ilumina (2020)
Edgard Pereira*
O interesse que os versos de António Franco Alexandre exercem no leitor brasileiro — e como tal me apresento — radica na presença da paisagem e cultura brasileiras em sua poesia, especialmente em Visitação (Porto: Gota de Água, 1983). Decorre daí a escolha da pesquisa de meu Doutorado em Ciência da Literatura (UFRJ, 1997) — a análise da produção poética de Cartucho, grupo surgido em Lisboa (1976), do qual participou AFA, em companhia de três outros autores — Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge e Hélder Moura Pereira.
O nomadismo, traço marcante em Visitação, procede de livro anterior, Os Objectos principais (1979), no qual as citações, a diversidade cultural e o gosto por viagens têm forte visibilidade, como esboçam os seguintes versos: “a capa de um livro/ de viagens na vitrina …” (ALEXANDRE,1996, 83); “… confesso que me perco nas suas/ vitrolas, escutando no aéreo desenho/ os prospectos de uma viagem ao coração da áfrica” (ALEXANDRE,1996, 115). Visitação colige o impacto do conhecimento de lugares e pessoas numa atmosfera cultural permeada pelo pós-colonialismo e pós-modernidade. “A abertura de Visitação é particularmente lúcida a este respeito porque exorta o leitor para a consideração de hipóteses, vívidos axiomas que muitas vezes conduzem a corolários desconcertantes: ‘suponha que desprende desaprende / que só der si depende separar-se / em esse início a boca desatenta / a boca desatenta / em mudo ouvido / suponho que me inventa’ (V:9)” (SOEIRO, 2020, 119).
Os versos de AFA continuam a gerar matéria de natureza hermenêutica. Dentre outros trabalhos surgidos em Universidades do Brasil e de Portugal, registro um dos mais instigantes — A sombra que ilumina, de Ricardo Gil Soeiro (Lisboa: Tinta da China, 2020). Fundamentado em ilações teóricas propiciadas por Gaston Bachelard, George Bataille e Gilles Deleuze, o autor enuncia seu propósito de uma leitura “pós-antropocêntrica”, tendo em vista o teor “pós-humanista” da poesia em questão.
Munido de rigoroso instrumental teórico, Ricardo Gil Soeiro investiga as peculiaridades do discurso poético de AFA — a associação inusitada de objetos e sensações, a desordem sintática, a equiparação entre o concreto e o abstrato, a citação cultural, traços de narratividade, num universo verbal talhado pela incerteza e imprecisão. A configuração de um universo movediço, em constante movimento e desagregação, articula-se a uma identidade poética também estilhaçada, ainda que receptiva à circulação de outras vozes. A incidência do foco em Aracne (2004) faculta o mergulho em denso arquivo literário que remonta a Ovídio, Mallarmé, Kafka, Calvino, Barthes, Ponge, Valéry. Nas considerações preliminares, o autor afirma estar diante de um “heteróclito conjunto de tópicos: da cinza ao fogo, da sombra ao sonho, do primado da matéria ao direito dos objetos, do abismo da pergunta à memória do enigma”. O que em Visitação era paisagem exterior, espaço exuberante, deslocamento, viagem, em Aracne se mostra como inserção na interioridade, no mistério, na metamorfose, no sonho. O poeta, tecelão de imagens verbais, vê-se identificado com uma aranha, tecedeira de frios e formas inusitadas. A habilidade do analista vê-se em crise, diante da opacidade da estrutura, da aspereza desafiadora, da intensidade lírica, da subjetividade elíptica, fragmentária, do cerrado diálogo intertextual. O analista sente-se impelido a destrinçar a “aventura pluralizada do sentido”, a escavar as fulgurações poéticas, a desfiar os fios luminosos da produção verbal, num contraponto ao sujeito lírico, que assim se expressa no poema 17: “aqui, soubesse eu ler, encontraria / explicada a tristeza e a alegria, / e como cada ser desdobra e afirma / a sua essência singular, e implica / os infinitos modos da substância”.
Embora se aprofunde na exegese de Aracne, Ricardo Gil Soeiro não se restringe a este livro. Toda a trajetória poética de AFA passa pelo crivo da investigação. Observe-se este passo do cap. VIII: “A indecidibilidade e a oscilação que tenho vindo a sublinhar plasmam-se ainda na tematização de dois topoi que comparecem recorrentemente nesta poesia: o sonho e a sombra. Ambos espelham a diluição de fronteiras, uma indecisão de fundo entre existência e inexistência, um fértil não-lugar ou espaço intersticial de um entre-ser, sinalizando o carácter difuso do existir. Por um lado, o sonho corresponde a um território cindido, não propriamente simulacro, mas realidade difusa e ambígua, de contornos indefinidos” (SOEIRO, 2020, 124).
O alegado “prisma pós-antropocêntrico” descortina vetores que evidenciam a associação entre a criação poética e a tecnologia, traço recorrente em AFA, desde Os objectos principais, aqui e agora retomado: “… fico a pensar se não teria sido / melhor ter construído uma doutrina / em duro nylon ou arame fino” (poema 18). A fábula revela-se apta para assimilar elementos éticos e morais (com seus andares superiores, solenes e intolerantes, como dizia Althusser). No regime de trocas entre o poeta e o aranhiço, os fenômenos expandem-se. O poeta não é o agente de artefatos verbais, mas um agente de transformação. O aranhiço (o inseto) ultrapassa o rótulo de axiologia classificatória, não deixa de produzir fios que se entrelaçam, mas recebe a possibilidade de ter sentimentos e afetos: humaniza-se. “Se o meu desgosto é ser, na grande Teia, / mensagem virtual ou sopro vago, / talvez me queiras tu me dares o teu rosto/ e eu no teu corpo me transforme em alma” (poema 12). O aranhiço aventa a hipótese de a internet ser espaço de interação, mas recusa preservar a identidade humana. Prefere a vida simples dos insetos, a ter que conviver com as nossas contradições: “Ser o homem-aranha não me tenta, / prefiro a vida tátil dos insetos / que ainda na morte se conservam puros” (poema quatro)
Diante de uma produção poética multifacetada e enigmática, como a de AFA, releve-se a bem-sucedida e ousada leitura de Ricardo Gil Soeiro. Ao se inscrever sob o viés “pós-humanista”, a análise empreendida procura afastar-se da postura racionalista, que teria um desempenho raso, diante da diafaneidade do corpus. Instaura, no entanto, uma nova chave de leitura, uma nova codificação hermenêutica, capaz de perceber conexões rizomáticas e apelos sinestésicos — “a cada instante me devora o gume / embotado da tua / luz sonora” (ALEXANDRE, 1996, 126), livres da condicionante maniqueísta e das ciladas da paráfrase.
Bibliografia:
ALEXANDRE, António Franco. Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.
ALEXANDRE, António Franco. Aracne. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
SOEIRO, Ricardo Gil. A Sombra que Ilumina. Lisboa: Tinta da China, 2020.
*Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, Brasil