A Fotografia de Identificação como instrumento de controlo: do século XIX aos seus desdobramentos na contemporaneidade
Rita Velez Madeira
Desde o seu surgimento, no século XIX, a Fotografia ocupou, em particular no Ocidente, o estatuto de guardiã do conhecimento e da verdade. Seja ao serviço das mais diversas áreas de investigação científica, da Medicina ou do Jornalismo, seja ao serviço da documentação policial e de uma panóplia de aparatos estatais que então se desenvolviam e penetravam cada vez mais eficazmente na vida das populações, o dispositivo fotográfico era assumido, segundo a expressão de um dos seus pioneiros, Henry Talbot, como um «lápis da natureza». O que me proponho então a analisar são as relações entre Fotografia, em particular a Fotografia de Identificação, Corpo e Identidade, relações essas ancoradas a um programa social mais vasto, um programa eugénico, bem como os seus desdobramentos na contemporaneidade.
Breve contexto histórico
A Fotografia de Identificação Criminal e Clínica, aqui focadas, bem como os seus extensos arquivos, desenvolveram-se num contexto histórico particular, que conheceu o cruzamento entre a corrente filosófica positivista, a fundação do conceito de Eugenia, a popularidade da Frenologia e da Fisionomia, a perspetiva anglo-saxónica sobre a Fotografia e a sua possibilidade de reprodução técnica, o estabelecimento de uma série de aparatos estatais e o desenvolvimento e crescimento de grandes centros urbanos.
No que toca à Fotografia em particular, esta atravessava uma importante viragem na passagem do século XVIII para o século XIX com a sua possibilidade de reprodução técnica. Só a sua capacidade de produção rápida, barata e massificada viria a possibilitar a criação de enormes arquivos policiais como adiante será detalhado. Além disso, estava amplamente enraizado no mundo ocidental o mito da verdade fotográfica, sendo a fotografia encarada como uma cópia não mediada do mundo real. Este estatuto de prova da Fotografia resultava em grande parte do lugar privilegiado que a máquina ocupava no seio de um intenso desenvolvimento industrial e tecnológico. A ilusão de uma não intervenção humana no dispositivo e captação fotográficos afastava as dúvidas geralmente associadas à irremediável parcialidade do ser humano. Mas, tal como Marita Sturken e Lisa Cartwright escrevem em Practices of Looking, há uma impossibilidade, que é desde logo técnica, de não intervenção humana:
“Independentemente do papel social de uma imagem, a criação de uma imagem através da lente de uma câmara envolve sempre algum tipo de escolha subjetiva através da seleção, do enquadramento e da personalização. É verdade que alguns tipos de imagem de registo parecem não ter intervenção humana. Nos vídeos de vigilância, por exemplo, ninguém permanece atrás das lentes para determinar o que deve ser gravado e como deve ser gravado. No entanto, até no vídeo de vigilância, alguém programou a câmara para gravar uma zona particular do espaço e enquadrou aquele espaço de uma forma particular.”
O próprio John Berger referia que ver a Fotografia como verdade é perturbar a própria ideia de verdade, é confundir a ideia de evidência visual com a ideia de verdade.
No entanto, a perspetiva dominante no século XIX e ainda com fortes nuances no século XX (e se quisermos ser rigorosos, ainda em parte presente atualmente) é a da fotografia como um mero suporte que recebe de forma transparente a realidade, deixando-se atravessar sem provocar distorções ou construir narrativas sobre ela. Roland Barthes falava da fotografia, fascinado e comovido, como o particular absoluto, a contingência soberana, «o Real, na sua infatigável expressão». Na verdade, nenhum outro carácter fotográfico que não o indicial teria favorecido tanto o seu uso pela documentação policial, pelos tribunais, pela medicina, por um programa social eugénico. No que respeita à Fotografia de Identificação Criminal, por exemplo, ela seria usada como o martelo pesado e irreversível da verdade, quando a intervenção humana na produção desses arquivos iria desde as próprias funcionalidades da câmara, à iluminação, à escolha das zonas do corpo fotografadas, à tipificação de determinadas posturas e posicionamentos do rosto em relação à lente, às classificações do texto adjacente, às fichas de identificação e arquivo no qual seriam inseridas. Tudo isto constrói o significado da imagem, reduzindo a possibilidade de ocorrerem leituras alternativas.
Simultaneamente aos novos usos e mobilizações da Fotografia, surgia uma constelação de novas instituições estatais- a prisão, a penitenciária, a escola, o manicómio, a polícia, nos quais o poder do Estado se enraizava subtilmente pela ideologia. As grandes cidades passavam por processos acelerados de urbanização e, como Sekula refere em The Body and the Archive, a estes novos centros urbanos de elevada densidade populacional está associado um crescimento da criminalidade, da pobreza, e de uma massa de sub-proletários cronicamente desempregados. A polícia centralizou-se assim nas grandes cidades e organizou-se numa hierarquia complexa, apesar de ter ramificado a sua presença um pouco por todo o território. Além disto, a propriedade privada estava agora em contacto com as massas de trabalhadores, o que criava a necessidade de estes, bem como os portos, canais e vias férreas pelos quais as mercadorias circulavam serem vigiados e controlados eficazmente por um corpo policial. Surgem assim inúmeros fotógrafos policiais, profissionalizando uma prática que, distintamente da escrita judicial ou administrativa, registava formas de conduta e atitudes suspeitas, colocando o comportamento dos indivíduos permanentemente sob vigilância. John Tagg escreve, em O Poder da Representação:
“Vinculada a uma série de mecanismos de poder reestruturados de forma similar, foi a polícia que instalou um novo nexo de poder-conhecimento no coração da vida da classe trabalhadora, expandindo as técnicas emergentes de observação-dominação além dos muros das novas instituições disciplinarias e reformatórias, como as prisões e as penitenciárias.”
A Fotografia vai então, segundo Tagg, ser cúmplice desta rede de poder em expansão, assumindo um papel importante como construtora do corpo criminal, objetificado, fragmentado e expropriado da sua verdade.
Registos de Identificação Antropométrica, Alphonse Bertillon, 1893
Fotografia de Identificação Criminal: os trabalhos de Bertillon e Galton
Não seria possível abordar a Fotografia como instrumento de controlo das populações sem mencionar os trabalhos de Alphonse Bertillon e Francis Galton que tão largamente contribuíram para o desenvolvimento desses mecanismos de controlo.
Bertillon, polícia oficial em Paris, criou o primeiro sistema de identificação criminal, de modo a criar processos mais racionais, rápidos e eficazes de identificação e captura de criminosos. Fê-lo a partir de fichas de identificação que combinavam a fotografia de retrato, a descrição antropométrica, bem como algumas notas breves e que seriam depois arquivadas com base num sistema estatístico, registando criminosos habituais ou profissionais. Este sistema viria a espalhar-se pelo mundo, em particular nos Estados Unidos da América, contribuindo para a internacionalização e estandardização de métodos policiais. Além disso, procurava responder a uma série de debates que dominavam a França no final do século XIX, acerca do Problema da Reincidência. O proletariado cronicamente desempregado era visto como uma fonte de criminalidade no meio urbano e algumas vozes mais extremas chegavam mesmo, como refere Allan Sekula, a reunir «vagabundos», anarquistas e reincidentes numa única figura composta de ameaça social. As recém-formadas metrópoles ocidentais enfrentavam assim novos desafios sociais e políticos, para os quais a resposta passou em grande medida por um estabelecimento do poder através de uma incessante vigilância das novas instituições disciplinarias. Tornava-se assim cada vez mais eficaz o controlo dos novos habitantes que rumavam à cidade e que podiam ser um perigo para a nova ordem capitalista. A Fotografia seria um elemento crucial na identificação e controlo destes habitantes, que além dessa representação visual permaneciam muitas vezes no anonimato. Na verdade, como bem nota Bertillon, “Um indivíduo só existia como um indivíduo ao ser identificado”. Sobre a Fotografia de Identificação Criminal, Sekula escreve que:
“Esta era uma guerra de representações. A Fotografia operava como a imagem da verdade científica, apesar das demonstrações de Bertillon acerca das inadequações deste medium. Fotografias e ilustrações técnicas foram implantadas, não apenas contra o corpo do criminoso representativo, mas também contra o corpo como portador e produtor das suas próprias, inferiores representações.”
Quando Sekula se refere às inadequações da Fotografia, tem em conta o facto de o próprio Bertillon ter mais tarde tentado transformar as fotografias recolhidas em registos verbais, de forma a tentar ultrapassar aquilo que identificava como insuficiências de um regime empírico puramente visual, no qual a totalidade dos sujeitos teria de estar ancorada a uma representação visual. E mais: o próprio regime de arquivo fotográfico viria a tornar-se problemático. A acumulação de milhares de fotografias ao longo dos anos viria a confrontar o arquivo com o paradoxal e irremediável problema que vive no seu âmago- o volume.
Ainda acerca do dispositivo fotográfico, parece-me importante notar que se por um lado este não é de facto neutro, por outro, não deve também ser vincado a uma perspetiva Tecno Determinista, como se ele fosse em si e por defeito negativo, dado que os seus usos, mesmo os mais opressivos, resultam sempre de um complexo aparato de saber-poder arquitetado pelo ser humano. Da mesma forma, o seu estatuto de verdade e de prova, a sua autoridade, não lhe são intrínsecas, tal como prova o facto de, noutras regiões do mundo, nunca o ter tido. O vínculo entre verdade e Fotografia mostra-se assim, não necessário, mas antes largamente construído pelo poder estatal e pelas suas instituições. John Tagg explana isto de forma bastante clara, ao escrever:
“Tal como o Estado, a câmara nunca é neutra. As representações que produz estão sumamente codificadas e o poder que exerce nunca é o seu próprio poder. Como meio de registo, chega a cena investida de uma autoridade especial para interromper, mostrar e transformar a vida quotidiana; com um poder para ver e registar; (…). Não se trata do poder da câmara, mas antes do poder dos aparatos do Estado local que fazem uso dela, que garante a autoridade das imagens que constrói para mostrá-las como prova ou para registar uma verdade.”
Outro conceito importante trabalhado por Bertillon foi o de «average man». A periferia só existe na medida em que existe um centro, assim como as tipificações de indivíduos marginalizados como um «perigo social» só existem em relação ao conceito de «indivíduo normal», dócil e produtivo. É precisamente a ideia de «average mann» que Bertillon persegue através da curva binomial de Quetlet. Ele vai identificar os padrões antropométricos da população, que serão depois traduzidos graficamente, sendo que a «normalidade» ocuparia a região central da curva e as regiões periféricas traduziam o crime e as patologias biossociais.
Todo o trabalho de Bertillon, assim como o de Galton, são atravessados de forma determinante pela corrente positivista. Ambos queriam definir e regular a desviância social e a demografia. A demanda de um programa eugénico de Galton e a redução de uma população inteira a uma curva gráfica e a equações estatísticas atendem, assim, a um programa mais vasto de promoção do progresso contínuo da sociedade, que se apropriou cruelmente da teoria evolucionista de Darwin e baseava as suas investigações em métodos puramente empíricos. A Fotografia, em particular, parecia prometer a concretização do sonho iluminista de uma linguagem universal e totalizante.
Francis Galton, seu contemporâneo, foi não só o fundador do conceito de Eugenia, defendendo a intervenção na reprodução humana através de políticas públicas (de modo a regular a possibilidade de reprodução de indivíduos que abalassem a demanda positivista do progresso social), como foi também estatístico e matemático. Inventou um método de retrato fotográfico composto (que viria a ser usado e manipulado a fim de sustentar o seu programa eugénico) e desenvolveu o primeiro método estatístico de estudo da hereditariedade. Galton acreditava existir um «tipo criminoso» biologicamente determinado, como se fosse possível demonstrar visual e estatisticamente a essência abstrata do crime. Esta ideia foi em muito influenciada pela Frenologia e pela Fisionomia, bem como pela psicologia behaviorista. Galton estava, portanto, mais próximo de uma escola italiana que olhava o crime de forma determinista e que usaria esta perspetiva para justificar do ponto de vista utilitarista do seu programa eugénico, alegando que este seria, supostamente, uma salvação para indivíduos condenados pela sua natureza à infelicidade.
Galton procurou transpor a curva binomial para um rosto humano, através do seu método da fotografia composta. Consistia em sobrepor uma série de retratos originais de diferentes pessoas que seriam reduzidos a um único retrato. A singularidades de cada sujeito eram então apagadas para dar lugar a uma única imagem com bastante grão, onde só era possível identificar traços mais gerais, e que corresponderiam à região central da curva, aos traços faciais do «average man». No fundo, era como se uma única imagem pudesse codificar uma equação de cálculo da média, como uma «estatística picturial».
Mas a expansão do uso documental da Fotografia no século XIX não se limitou aos arquivos policiais. Depois da viragem que permitiu a reprodução fácil e rápida da Fotografia, a identificação clínica deixou de registar apenas os casos dos seus pacientes menos comuns para passar a registar sistematicamente todas as pessoas que estivessem internadas nos manicómios. Não raras vezes este sistema era articulado com a Polícia, de forma a controlarem e capturarem pacientes em casos de fuga. Hugh Diamond, membro fundador da Royal Photograghic Society e diretor residente do departamento de mulheres do manicómio do condado de Surrey, no Reino Unido, empenhou-se em defender a aplicação da Fotografia ao esclarecimento da loucura. Criou inclusive enormes arquivos de retratos dos seus pacientes, compilados no álbum Retratos da Loucura. Diamond via na Fotografia um registo perfeito e fidedigno, e até um método para alcançar um novo tipo de conhecimento, como o ilustra bem a sua afirmação:
“A fotografia é tão essencialmente a Arte da verdade- e a representante da Verdade na Arte- que se diria que é o meio essencial para reproduzir todas as formas e estruturas cujo esclarecimento procura a ciência.”
Cartão Bertillon, 1913
Os usos da Fotografia pela Medicina, assim como a leitura dos retratos criminais, eram feitos à luz da Frenologia e da Fisionomia. Como disciplinas taxonómicas e comparativas, procuravam abranger a total variedade da diversidade humana. Criaram, segundo as palavras de Sekula, extensas tipologias de zonas de genialidade, virtude e força sempre em relação a zonas de idiotice, criminalidade/vicio e fraqueza. Construíram, assim, enormes arquivos do corpo humano, tipificando o imoral e patológico, reclamando a possibilidade de distinção (através do aspeto, do corpo, do rosto, do crânio) entre o vicio e as marcas brilhantes da virtude. Ofereciam um método “cientifico” para avaliar o carácter de estranhos. Mas estas disciplinas mostram também como a própria ciência pode ser contaminada pelos preconceitos da sociedade em que é feita, e como a Fotografia, usada com o seu suposto carácter de verdade e denotação, ao serviço da Medicina, vai ser também um instrumento de replicação e alargamento de certos mitos e visões discriminatórias.
Há, contudo, outro chão comum importante entre as Fotografias de Identificação Criminal e Clínica: a forma como trabalhavam a identidade dos sujeitos retratados. John Tagg escreve:
“É possível identificar um padrão comum entre as fotografias de identificação criminal e as fotografias de identificação clínica- o corpo tornado mercadoria, a objectificação e despersonalização dos sujeitos retratados, o submetimento a um olhar sem resposta possível, o escrutínio de gestos e rostos, a claridade da iluminação e a nitidez do enfoque, o espaço reduzido, os nomes e as placas com números. Estes são os traços do poder.”
Método da Fotografia Composta de Francis Galton. Retirado de Inquiries into Human Faculty, 1883
O Impacto das Fotografias de Identificação Criminal e Clínica na Identidade dos Sujeitos
Todas as Fotografias de Identificação se caracterizam, antes de mais, pela representação do rosto. Este parece ter um vínculo mais profundo com a identidade do que qualquer outra parte do corpo, como se a partir da natureza fragmentária dos registos do corpo se operasse uma economia visual da identidade, uma sinédoque visual, que torna possível a representação da totalidade do corpo apenas por algumas partes, por excelência o rosto, mas também em detalhe as orelhas e o nariz. David Le Breton, antropólogo, assinala que é nele que se condensam os valores mais elevados. O rosto é, segundo ele, o lugar de cristalização dos sentimentos de identidade, o lugar a partir do qual se estabelece o reconhecimento do outro, ideia que desenvolve em A Sociologia do Corpo:
“A alteração do rosto, que expõe a marca de uma lesão, é vivida como um drama aos olhos dos outros, não raro como um sinal de privação de identidade. Uma lesão, mesmo que grave, no braço, na perna ou na barriga não enfeia; não modifica o sentimento de identidade. O rosto é, ao mesmo título que o sexo, o lugar mais valorizado, o mais solidário do Eu. O comprometimento pessoal é tão maior quanto um ou outro é atingido. Numerosas são as tradições nas quais o rosto é associado a uma revelação da alma. O corpo encontraria aí o caminho da sua espiritualidade, as suas cartas de nobreza. O valor ao mesmo tempo social e individual que distingue o rosto do resto do corpo, a sua eminência na apreensão da identidade é sustentada pelo sentimento de que o ser inteiro aí se encontra. A infinitésima diferença do rosto é, para o indivíduo, o objeto de uma incansável interrogação: espelho, retratos, fotografias, etc.”
E na Fotografia de Identificação Criminal, em particular, essas infinitésimas diferenças são cristalizadas através de uma restrita gramática de posicionamentos do rosto. Se por um lado o retrato frontal era mais facilmente assimilado, por outro, o retrato de perfil, tinha a vantagem de captar o contorno da cabeça que é praticamente invariável ao longo tempo, evitando as inevitáveis transformações da expressão do rosto. Outro detalhe curioso acerca do retrato frontal é que ele tinha, na linguagem de Bourdier, um capital simbólico próprio. Enquanto o retrato das classes altas primava por rostos suavemente inclinados, normalmente a três quartos, os indivíduos de classes mais baixas, ou que tinham cometido crimes eram coercivamente entregues ao escrutínio impiedoso da lente. Era como se esse olhar fotográfico, do alto da sua autoridade mecânica e indiferente, pudesse pôr termo à multiplicidade de identidades fabricadas pelos criminosos e ditar a verdade, una e irreversível, sobre eles. Era precisamente este o potencial instrumental que Henry Talbot reconhecia no dispositivo fotográfico- «um silêncio que silencia». Quanto ao retrato de perfil, o seu capital simbólico era duplo e contraditório, na medida em que era, como já referido, de extrema importância na composição das fichas de identificação criminais, mas partilhava simultaneamente de um carácter honorífico que desenhava os contornos dos rostos de perfil de monarcas ou de figuras reconhecidas em moedas e notas, por exemplo.
Outro ponto que me parece relevante sublinhar é a forma como a fotografia de identificação criminal conjuga uma individualização extrema dos sujeitos, que serve de análise para o maior detalhe antropométrico, mas simultaneamente os despersonaliza reduzindo-os à categoria de «criminosos» ou «doentes mentais», como se estas ocupassem a totalidade da sua identidade e da sua personalidade. Já o «average man», por sua vez, está também mais subtilmente condenado a uma despersonalização, dado que é entregue ao anonimato total, não passando de um valor, uma região de um gráfico, um conceito desejado e estandardizado. Penso que seja de notar também que, apesar da detalhada descrição antropométrica, o nome do sujeito nem sequer é identificado em algumas fichas de identificação de Bertillon. E retirar o nome da identificação de alguém é um dos indicadores mais óbvios de despersonalização e desumanização. Ainda sobre a identidade, pergunto-me se a classificação e categorização do sujeito reincidente como “criminoso profissional” não contribuiria de alguma forma para uma perpetuação dessa conduta, tornando difícil uma forma diferente de presença na sociedade, dado que o seu corpo ficava para sempre marcado como um corpo criminal antes de tudo o resto.
Por último, julgo que a fotografia composta de Galton nos deixou um legado particular, subtil e talvez por isso perpetuado de forma tão acrítica e perigosa, na medida em que contribuiu em muito para a construção de uma visão racializada do mundo. Le Breton escreveu que “O racismo é derivado da imagem do corpo”, e eu acrescentaria que é derivado também do imaginário do rosto, como assinalado, tão vinculado à identidade. Basta ser um cidadão minimamente atento para constatar que ainda existem bastantes indivíduos brancos que olham indivíduos de outra etnia considerando que estes “são todos iguais” ou “têm rostos iguais”, tecendo comentários a esse respeito que não vou aqui reproduzir. Apagam as suas singularidades, despersonalizam-nos acrítica e preguiçosamente e olham-nos apenas através de um filtro, agora sim, racial, reduzindo as suas identidades ao imaginário abstrato do rosto tipificado de uma raça que, como sabemos, é um discurso fabricado. Parece-me então que esta forma de olhar o outro carrega um certo legado «galtoniano» na medida em que tem por detrás a mesma lógica de apagamento das singularidades de cada rosto e a sua redução a um único rosto tipificado, neste caso, de uma suposta raça. É como se essa visão racializada do mundo tivesse operado até a um nível cognitivo, fazendo-nos carregar abstratas fotografias compostas de “raças”. O primeiro instinto de muitas pessoas torna-se, assim, olhar o Outro imediatamente como um estrangeiro, como uma mera categoria racial que não deixa espaço para um olhar mais profundo, atento e humano que permitisse ver no Outro não um estrangeiro, mas uma parte também do seu próprio Eu; ver no outro um nome, uma pessoa particular humanizada. Le Breton continua o seu raciocínio sobre isto escrevendo:
“A “raça” é uma espécie de clone gigantesco que, na imaginação do racismo, faz de cada um dos membros fictícios que a compõem um eco incansavelmente repetido. A história individual, a cultura, a diferença são neutralizadas, apagadas, em prol do imaginado corpo coletivo, subsumido sob o nome de raça. O processo de discriminação repousa no exercício preguiçoso de classificação: só dá atenção aos traços facilmente identificáveis (ao menos a meu ver) e impõe uma versão reificada do corpo. A diferença é transformada em estigma. O corpo estrangeiro torna-se corpo estranho. A presença do Outro resume-se à presença do seu corpo: ele é o seu corpo. A anatomia é o seu destino.”
Biopolítica de Foucault
Ora os vários usos da Fotografia, e acima de tudo do estatuto de verdade da Fotografia, acima explorados estão inseridos em complexas relações de saber-poder que atravessam toda a nossa sociedade. O poder é algo que se exerce, mais do que algo que se possui, e tal acontece através da ideologia, do saber que produz e que vai por sua vez alimentar mais esse poder. Michel Foucault escreve precisamente que:
“Um regime de verdade é essa relação circular que a verdade tem com os sistemas de poder que o produzem e sustentam, e com os efeitos de poder que ela induz e que a reorientam.”
Da mesma forma, os projetos de Bertillon e Galton, sendo projetos eminentemente demográficos de transformação e controlo da vida das populações, estão inseridos naquilo que Foucault vai cunhar como uma Biopolítica. O autor define-a, no primeiro volume de A História da Sexualidade, como:
“(…) o que faz com que a vida e os seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana; (…)”
É que o Estado e a Soberania forjados na Modernidade passaram não a decidir sobre a morte dos indivíduos, mas antes a regular a vida da sua população, através da sua intervenção nas taxas de natalidade, na reprodução, na esperança média de vida, entre outros aspetos. Assim, o aparato de saber-poder das Fotografias de Identificação Criminal e Clínica serviu um projeto político mais vasto, estando o seu cunho biopositivista profundamente comprometido com a criação de indivíduos dóceis e úteis ao sistema de produção capitalista, marginalizando aqueles que não serviam ou ameaçavam esse sistema. Não por acaso, foi também ao longo dos séculos XIX e XX que se deu um progressivo processo de entrosamento entre a esfera pública do Estado e a esfera privada. Foucault resume esta ideia ao escrever:
“(…) um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. Já não se trata de pôr a morte em ação no campo da soberania, mas de distribuir os vivos num domínio de valor e utilidade. Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar no seu fausto mortífero; não tem de traçar a linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano, opera distribuições em torno da norma. Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras.”
Mas os projetos de Bertillon e Galton não ficaram no século XIX nem no século passado. Eles fazem-se presentes no século XXI, mesmo através de outros dispositivos visuais que reproduzem a mesma lógica discriminatória e racializada. É o caso de novas e mais sofisticadas tecnologias de reconhecimento facial, sustentadas pela inteligência artificial. Os arquivos digitais já não enfrentam o problema de volume que o arquivo de Bertillon enfrentou e a «visão computacional» é agora programada e automatizada. Apesar da tecnologia estar a ser testada por várias autoridades policiais nos EUA e não só, um líder técnico da Equipa de Inteligência Artificial Ética da Google, Timnit Gebru, já alertou para o facto de o reconhecimento facial ter mais dificuldade em diferenciar pessoas de pele escura. Além disso, as próprias bases de dados estão enviesadas porque os conjuntos de dados originais são maioritariamente de homens brancos, provocando enormes taxas de erro pelo tom de pele e pelo género. Quanto à Fotografia, ela chegou ao nosso século envolta em ambiguidades e inéditas desconfianças provocadas por novas possibilidades de manipulação. Marita Sturken e Lisa Cartwright resumem-no muito bem:
“A nossa consciência da natureza subjetiva da imagem está em constante tensão com o legado de objetividade ligado às câmaras e máquinas que produzem imagens hoje.”
Parece-me, assim, importante ter em conta a história dos usos do dispositivo fotográfico para melhor compreender os novos usos políticos e sociais de outros dispositivos visuais que tanto se vão desenvolver no século XXI, a par com a inteligência artificial, a bioengenharia e os biomedia. Juntos, vão oferecer-nos desafios éticos profundamente complexos e arrisco-me a dizer que vão trazer formas de controlo dos corpos e das populações cada vez mais subtis e penetrantes. Podemos até vir a falar já não apenas de uma disciplinarização dos corpos, mas também de uma disciplinarização das mentes, à medida que a neurociência trouxer também descobertas inéditas sobre o funcionamento do cérebro humano. E porque vivemos numa cultura eminentemente visual, estas formas de controlo vão irremediavelmente fazer uso dos dispositivos visuais que mais lhes convierem. John Tagg escreveu, assim, algo sobre a Fotografia que me parece hoje poder alargar-se a outros dispositivos visuais em relação aos quais teremos de estar prementemente atentos: “As fotografias nunca são a prova da história, elas mesmas são o histórico.”
Bibliografia e Webgrafia
SEKULA, Allan. The Body and the Archive. Washington D.C.: The MIT Press, 1986
TAGG, John. El Poder de la Representación, ensayos sobre fotografias e historias. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005*
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I, A Vontade de Saber. 13 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988
LE BRETON, David. A Sociologia do corpo. 2 ed. São Paulo: Editora Vozes, 2007
STURKEN, Marita. CATWRIGHT, Lisa. Practices of looking. Nova Iorque: Oxford University Press, 2001*
BARTHES, Roland. Câmara Clara. 9 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984
“Inteligência artificial: Por que as tecnologias de reconhecimento facial são tão contestadas” in BBC News Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/geral-48889883 (22 de maio de 2020)
Nota: nos livros assinalados com * não se encontrava identificado o número da edição